Estrada da Mata, era como eles diziam. Mas nem o Barão de Antonina seria capaz de reconhecê-la em nossos tempos. Lá se vão quase dois séculos desde que a estrada foi aberta, e até há mato ao redor dela, mas agora se trata de uma BR, tão vertiginosa quanto qualquer outra. Aqui e ali uma placa avisa sobre os locais com grande número de acidentes. Há muitas placas, há placas com o desenho de um alce, há uma placa avisando que não se deve danificar as placas. Eis, enfim, o pórtico: Rio Negro, Paraná.
É a antiga povoação criada justamente para dar um impulso à estrada. Mas quem iria querer se instalar nesse fim de mundo na época? Os imigrantes, é claro, chamem os alemães. E eles vieram, alemães do Trier, a região mais antiga da Alemanha, já bastante industrializada, onde um homem podia dispensar o trabalho agrário, onde podia até se dar ao luxo de ter algumas ideias revolucionárias, como bem provou o velho Marx. E de repente esse pessoal se vê obrigado a viver “em um sertão inóspito, sem estradas, sem comércio, sem guia e sem dinheiro, face a face com a miséria rodeada de seu lúgubre cortejo”, conforme anotou o imigrante Nicolau Bley. Quem diria que alguns anos depois esse mesmo Bley teria mão-de-obra escrava! É o que nos mostram os livros velhos, amarelados e cheios de ácaros que, de vez em quando, me fazem viajar por aí.
Esses tempos já passaram, sem dúvida, mas ainda se sofre em Rio Negro, sobretudo quem anda a pé e precisa subir as suas tantas ladeiras. Um dos feitos mais notáveis da cidade, digno de figurar no rol de atrações turísticas, é a sua ausência de semáforos. E olhe que são muitos os cruzamentos (tem um em cada esquina). De alguma forma todos se entendem e, na minha presença, nada de mais grave se pôde observar. Sigo o rumo do centro, mas esse centro não chega nunca, e quando vejo já estou quase atravessando a ponte com direção a Mafra, cidade-gêmea, já em Santa Catarina. Só então me ocorre que, de certo, o centro de Rio Negro é menos movimentado que o de Curitiba.
Mas, como em todos os centros, há ali uma rua 15 de Novembro, e essa foi a primeira do Brasil, criada ainda em 1870, quando Rio Negro se separou da Lapa. Miseravelmente, em 1889 proclamou-se a República, o que teve como resultado mais imediato a banalização da data. Vejo as pessoas caminhando e me lembro que a mulher do Guimarães Rosa nasceu aqui. Não estará também a minha dando voltas por aí? É possível, mas não tenho tempo de averiguar, como, de resto, também não tenho para escrever um novo Grandes Sertões.
A comida é boa e a televisão passa o jornal, mas o jornal de Curitiba. O que é que um cidadão de Rio Negro tem a ver com as notícias de Curitiba?
Súbito, vejo um jipe do exército. Em seguida, dou de cara com um próprio soldado, e só então me lembro que em Rio Negro está sediado um batalhão. Tenho um arrepio e, instintivamente, levo a mão à minha bolsa, onde levo o subversivo livro em que Tolstoi defende a não-resistência ao mal. Tomo o rumo da igreja de Bom Jesus da Coluna, certo de que ali não serei incomodado. Infelizmente, naquele dia Deus não estava atendendo. Sugiro aos rio-negrenses, os do Trier e os da Bucovina, imigrados depois, que abram mais restaurantes perto da igreja, pois, se é certo que nem só de pão viverá o homem, também é verdade que não chegamos ao ponto de prescindir dele.
Que estou dizendo? O único restaurante que encontrei muito me agradou, é um restaurante que não dá fichinha ou comanda, o caixa é que pergunta “o que foi para você mesmo?”. A comida é boa e a televisão passa o jornal, mas o jornal de Curitiba. O que é que um cidadão de Rio Negro tem a ver com as notícias de Curitiba? Quando é que o jornal de Curitiba vai dizer uma notinha pelada que seja a respeito de Rio Negro? (Ouço vozes a me esclarecer: quando o rio sobe e inunda a cidade).
Basta, é tempo de voltar a me trancar em uma sala com meus imigrantes. É tempo de ver que histórias eles irão me levantar e para onde mais pretendem me levar.