Era 1944, a guerra ainda não acabara, mas já havia, na Europa, quem apostasse no futuro e, num gesto de amor e esperança, editasse um livro de contos húngaros. A Gleba, de Portugal, colocaria para circular naquele ano a primeira edição de contos húngaros em língua portuguesa. Não se sabe por quais caminhos, um exemplar desse livro foi parar no Brasil e, mais especificamente, em Curitiba, onde ele seguramente já estava no ano de 1955. Foi, afinal, naquele ano que o livro foi doado à Biblioteca Pública do Paraná. Desde então ele tem sido oferecido ao empréstimo dos curitibanos e ainda nos dias de hoje esse livro é levado para casa com frequência – basta dizer que, apenas no século XXI, foram oito os empréstimos. É um livro de 75 anos de idade com escritores obscuros de uma literatura obscura, e não é um romance, mas um livro de contos. Mesmo assim, o livro tem circulado, alcançando os objetivos do seu lançamento.
O que se conhece da Hungria? O Puskás, o Sándor Márai – que, aliás, já era famoso em 1944, mas não fazia contos, de maneira que é apenas citado na introdução do livro com o inusitado nome de “Alexandre Márai”, porque esses portugueses gostavam de traduzir o primeiro nome dos escritores de outros países. Dezsö Kosztolányi, que hoje já tem livro publicado no Brasil e é conhecido por um pequeno grupo de iniciados, comparece no livro sob o nome de Desidério. Um húngaro chamado Desidério! Mas não censuremos os portugueses: foi muito o que fizeram com esse livro, não apenas para a Hungria, esse estranho país com uma das línguas mais difíceis do mundo, mas para a própria literatura.
Era 1944, a guerra ainda não acabara, mas já havia, na Europa, quem apostasse no futuro e, num gesto de amor e esperança, editasse um livro de contos húngaros.
Talvez tenham errado no primeiro conto, “Koszibrovszky, homem de negócios”, de Kálmán Mikszáth, que está muito mais para novela do que para conto e tem bem mais páginas que todos os outros. Porque nos outros se nota uma unidade, de estilo e de espírito. Sobressai-se, entre eles, uma acentuada nota existencialista, seja discutindo abertamente questões como “o direito a se suicidar”, em “A última lição”, de Aurél Kárpáti, ou, mais comumente, através de trajetórias de vidas que evidenciam, se não a falta de sentido, ao menos a quase impossibilidade da felicidade. Em verdade, até há a “felicidade”, pois um dos contos, de Dezsö Kosztolányi, se chama “Um homem completamente feliz”, mas essa é uma felicidade que nasce do puro isolamento do mundo cotidiano, mundo que não o valoriza e tampouco o compreende.
A incompreensão, aliás, é uma marca comum para esses personagens, como se vê em “Elvira” de Lajos Zilahy, em que a personagem chega ao ponto de criar na imaginação outros pais para si, bem mais amáveis que os reais. O comum então é fugir das pessoas, como Elvira foge, ao mesmo tempo em que anseia por alguma forma de afeto. O irônico é que quando lhe aparece uma oportunidade, e ela tem então a chance de ser feliz, já é tarde demais: ela já havia decidido acabar com tudo. O personagem de “Solidão”, de A. Bonyi havia passado por uma experiência traumática e passou a sentir a necessidade de companhia. Conseguiu, teve a sua amada, a sua “enfermeira”, mas também essa não foi uma felicidade que se consolidou: num momento de “fraqueza”, a solidão voltou e, com ela, a tragédia que ele temia.
Há casos em que são os outros que vêm nos procurar e oferecer algo que pode ser visto como “a felicidade”, mas, se nos tiram do nosso ambiente, é possível que a adaptação não venha e, pior, que sequer consigamos nos encontrar outra vez no momento da volta, como demonstra Ferenc Molnár (aquele, o autor de Meninos da Rua Paulo), em “O boneco de neve”. Ah, e aquelas vezes em que o bem-estar não é possível desde cedo, porque as condições financeiras não permitem! O mais comovente conto do livro é “A última vontade”, de Jószef Nyirö, a mostrar o quanto a dor e a tragédia, que por si só já são obstáculos para a felicidade, se tornam ainda maiores se, a elas, se junta a falta de recursos financeiros.
Nada mais natural que, em algum momento, se perca o controle e se ceda a um desespero como o mostrado em “O pão”, de Lajos Bibó. Não que não haja esforço. Há esforço e às vezes o esforço vira sacrifício, sacrifício que, nem por isso, recebe alguma compensação. “O paraíso das mães”, de Kálmán Csathó, demonstra vivamente tudo o que uma mãe é capaz de fazer para conseguir a felicidade dos outros. Mas até as mães, quem diria, podem ser um obstáculo à felicidade, como é explorado por Zsolt Harsányi em “Abaixo a tirania!”.
Não poderia faltar também o problema do coração, que tão bem incorpora o ideal de felicidade, mas que, uma vez frustrado ou mal resolvido, pode afastar uma pessoa dela definitivamente. Há memórias muito duras de se suportar e das quais se quer fugir, como em “O pato bravo” de Sándor Hegedüs. Há aqueles casos em que achamos que temos o amor e a felicidade nas mãos, mas sem saber que o outro lado, a outra metade, está com outros planos, e talvez até se divirta às nossas custas, com a crueldade exposta em “Uma mulher singular”, de Ferenc Herczeg, e “Noite no bar”, de Zoltan Szytnyai, no que se refere às mulheres, e em “A carta que não chegou a ser enviada”, de C. Koncz, em que a maldade é masculina. Nem por isso, nem por todo o mal que se pode conseguir, deixa-se de sonhar, deixa-se de admirar “A mulher bela”, como no conto de Tibor Zsekely, mas mesmo isso pode ser um perigo, para nós, para a mulher bela, quem sabe se para a própria humanidade.
Ao fim de tudo, fica a impressão de que é, ou de que um dia foi, a despeito de toda a beleza do país, muito difícil ser feliz na Hungria.