“A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia.
Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente”.
Os versos acima pertencem a “A Arte de Perder”, da norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979), uma das maiores poetas de sua geração. Ela viveu no Brasil entre as décadas de 1950 e 70, enquanto manteve um intenso e tumultuado relacionamento amoroso com a arquiteta Lota de Macedo Soares. O poema, um dos meus favoritos, é citado pela protagonista de Para Sempre Alice, filme que deu a Julianne Moore o Oscar de melhor atriz neste ano e que eu não havia visto até a noite o último domingo. Deliberadamente, o estava evitando, pois trata de um assunto não muito fácil para mim.
Alice Howland recorre à obra-prima de Bishop em uma das suas cenas mais significativas do longa-metragem. Menciona o poema na abertura de um misto de palestra e discurso que profere, em primeira pessoa, em um evento organizado por uma entidade voltada ao apoio de portadores da doença de Alzheimer.
Com apenas 50 anos, Alice, uma renomada professora de Linguística na Universidade de Columbia, em Nova York, é diagnosticada com a enfermidade, que pouco a pouco lhe rouba a memória. Primeiro são as palavras que lhe escapam – “léxico”, ironicamente, é a primeira delas. Depois, ao sair para correr, algo costumeiro em seu cotidiano, ela se perde, não sabe onde está, no exato momento em que se encontra em pleno campus da instituição onde leciona há anos.
Alice está, a essa altura, perdendo lembranças, nomes de pessoas, compromissos, o rumo de seus passos em trajetos corriqueiros, como ir ao banheiro. Até mesmo o sabor do seu sorvete favorito lhe escapa. Mais do que tudo, ela aos poucos se apaga. Perde a si mesma.
Minhas duas avós tiveram Alzheimer. A paterna sucumbiu à doença longe de meus olhos. Morava em Campinas, no interior de São Paulo, e, infelizmente, não éramos tão próximos. Coisas da vida. Mas a materna, Hilda, com quem morei durante muitos anos, vi dissolver-se de perto. Lenta e cruelmente.
Recados que não eram dados, panelas ficavam no fogo mais tempo do que deveriam, portas deixadas abertas, telefones fora do gancho. Muitos foram os sinais, muitos deles inofensivos, de que algo se passava. Mas dei-me conta de que se tratava de algo mais grave no dia em que cheguei à casa do trabalho, no fim da tarde, e a encontrei no quarto escuro, sentada diante da penteadeira, olhando-se no espelho. Chorava.
Sempre muito vaidosa, dona Hilda não saía à rua sem estar arrumada, saltos altos, cabelos bem penteados, maquiada. Naquele dia, parecia não se reconhecer. Tinha o rosto todo borrado: o batom se espalhava para além dos limites dos lábios; as sobrancelhas, que fazia questão de redesenhar com lápis marrom, eram rabiscos em desalinho no seu rosto, contorcido pelo desespero. O rímel escorria com as lágrimas. Prostrada, mirava sua imagem refletida, e parecia enxergar uma mulher que não era ela. Jamais esquecerei essa imagem, momento em que me dei conta de que minha avó estava se dissolvendo. Anos se passaram depois disso. Muitas perdas, dia após dia.
“Sempre muito vaidosa, dona Hilda não saía à rua sem estar arrumada, saltos altos, cabelos bem penteados, maquiada. Naquele dia, parecia não se reconhecer.”
No filme, Alice, uma mulher energética, ao mesmo tempo cerebral e generosa, faz um pacto consigo mesma. Deixa no computador, em uma pasta intitulada “Borboleta”, uma mensagem gravada em vídeo, reservada para o dia em que não conseguisse mais responder um questionário diário, como informações básicas sobre sua vida, como os nomes dos filhos, seu mês de nascimento, a rua onde mora.
Caso não encontrasse mais respostas para essas perguntas, deveria procurar um frasco de comprimidos guardado na gaveta da cômoda de seu quarto. Todas as drágeas deveriam ser ingeridas de uma só vez. Para abreviar a perda. Seria melhor assim.
Também há na trama um momento no qual ela se olha no espelho. Talvez o mais doloroso para mim. A personagem, já sem saber ao certo quem é em determinados momentos, sobre ele espalha algo que parece pasta de dente, ou outro creme qualquer, e se esconde de si mesma.
Alice tenta, mas não consegue realizar seu plano, aquele descrito no vídeo. Um acidente de percurso impede que o leve a cabo. Talvez fosse cedo demais. No fiapo de tempo, ou de consciência que lhe resta, ela se reaproxima de uma das filhas, Lydia (Kristen Stewart), que se propõe a cuidar da mãe, quando o pai (Alec Baldwin) aceita uma proposta de trabalho em outra cidade. Em meio a tantas perdas, um encontro, ainda que breve e fugidio.