Ele nunca imaginou que voltaria a se sentir assim, tão perplexo diante dos acontecimentos na vida pública do país. Era criança, e depois adolescente, durante os anos de chumbo. Lia, ouvia histórias atrás de portas, e canções que sugeriam um terror que não chegava a enxergar de dentro de sua redoma, mas sabia estar lá, a espreita. Como o dogue alemão que o atacou na casa de um vizinho, em uma tarde quente de sua infância no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro.
Nunca tinha visto o cão, ouvira seus latidos e, de repente, quando errou o caminho de saída para a rua, estava já com o pé na boca do animal, que o lançara como um boneco sobre o chão. Poderia ter morrido ali, mas sobreviveu para contar.
Não é moço nem velho e equilibra-se na corda bamba do tempo. Mais do que o medo da queda, causa-lhe arrepios a ignorância orgulhosa dos que defendem um retorno cego ao passado, o retrocesso.
Só realmente começou a ganhar consciência do estado de coisas com o passar dos anos: o processo de redemocratização teve início quando dava os primeiros passos, muitos deles incertos, em direção à idade adulta, em meados da década de 1980. Os resquícios do regime militar ainda eram visíveis, sobretudo nas relações de poder mais cotidianas. Ele sentia medo, e muitas vezes não sabia precisar por quê (seria o trauma deixado pelo cão?), porém o ímpeto de juventude o colocou em movimento. Acreditou no poeta que cantava:”Amanhã vai ser outro dia”. E, de fato, foi. Mas eis que chegou a roda-viva…
A sensação de insegurança voltou a rondá-lo agora, que é homem de meia-idade – nunca entendeu muito bem essa expressão, mas na falta de outra, a utiliza para localizar-se na cronologia de sua vida. Não é moço nem velho e equilibra-se na corda bamba do tempo. Mais do que o medo da queda, causa-lhe arrepios a ignorância orgulhosa dos que defendem um retorno cego ao passado, o retrocesso. São discursos tão cegos, excludentes, cruéis com tudo que não conhecem. Eles têm medo da balbúrdia, sem saber que, sem ela, não há vida, nem movimento, tampouco progresso.
“A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino prá lá ..”.
O cão está atrás da porta.