Em Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago escreve sobre uma epidemia que rouba das pessoas seu sentido mais precioso: a visão. O inusitado, e talvez mais perturbador, é que, na imaginação prodigiosa do autor português, deixar de enxergar não é mergulhar na escuridão. Tudo desaparece e, no seu lugar, resta apenas o branco absoluto do vazio, do nada, com o qual a humanidade é, de certa forma, castigada. A chegada da barbárie é uma questão de tempo quando a civilização se dissolve nesse vácuo. Perde-se a humanidade e sobra a violência como meio de sobrevivência.
Nestas semanas de quarentena, mesmo sem nos deslocarmos grandes distâncias, caminhamos, ou talvez tenhamos sido conduzidos mesmo contra nossa vontade, em direção a uma encruzilhada. Nessa bifurcação, um dos caminhos pode levar, em relativa segurança, a um lugar de reflexão, de autocrítica. Na marra, temos sido forçados a repensar sobre nossa maneira de viver, a respeito da pressa, da impessoalidade, e, de certa maneira, a nos percebermos em nossa frágil humanidade. A outra estrada, escolhida por muitos brasileiros, é a da cegueira, da arrogância ignorante que duvida do vírus, desdenha da ciência, e opta por um messianismo demoníaco. Para estes, o branco do nada ver é belo.
O timoneiro insano dessa nau à deriva desdenha do caminho da reflexão, debocha da autocrítica, zomba da cautela, porque, para ele, as vidas dos passageiros, ou de boa parte deles, pouco ou nada valem. “
Em mais de meio século de existência, eu nunca me senti tão em perigo como hoje, em abril de 2020. Não me sinto só, é verdade, porque compartilho com centenas de milhões ao redor do mundo o medo daquilo que está à espreita, e foge de meu controle.
Trata-se de uma ameaça biológica e só nos resta buscar proteção, sermos prudentes, zelarmos uns pelos outros, o que pode ser um aprendizado importante, se quisermos nos reinventar como espécie. Mas ser brasileiro hoje me colocou em um grupo de risco, por mais cuidadoso que eu venha tentando ser.
O timoneiro insano dessa nau à deriva desdenha do caminho da reflexão, debocha da autocrítica, zomba da cautela, porque, para ele, as vidas dos passageiros, ou de boa parte deles, pouco ou nada valem. “Morrer faz parte da vida.” A perda da visão é conveniente.
Como no transatlântico Titanic, não há botes salva-vidas para todos e apenas os viajantes da primeira classe têm o privilégio da escolha, têm direito à possibilidade de sobreviver. O vírus da cegueira já foi inoculado e o mal se espalha, condenando nosso futuro ao branco, ao vazio da ignorância.