Há livros que nos caem nas mãos um tanto ao acaso e acabam tendo uma ressonância imensa não apenas em nossa formação intelectual, mas também nos reconfiguram como pessoas. Provocam reflexões tão profundas, que nos penetram a derme até atingir uma instância sob a qual temos pouco ou nenhum controle. Uma dessas obras é o romance As Afinidades Eletivas, do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), publicado em 1809 e adaptado para o cinema em 1996 pelos irmãos Vittorio e Paolo Taviani.
Nele, um casal, Eduard e Charlotte (Jean-Hugues Anglade e Isabelle Huppert, no filme), vive em uma localidade do interior, em um estado de aparente felicidade plena: são belos, cultos e abastados, o que nos leva a crer que estão fadados à felicidade. Mas não. Há, no fundo dessa placidez, correntes intensas, meio dormentes, das quais nem mesmo eles parecem se dar conta.
A chegada repentina em suas vidas de Capitão e Ottilie (Fabrizio Bentivoglio e Marie Gillain), que representam um mundo externo, repleto de mistérios e possibilidades, altera o cotidiano de Eduard e Charlotte. Eles vivenciam rápidas, mas não menos dramáticas, transformações. O que antes estava submerso, propositalmente intocado, emerge com força vulcânica sob a forma de desejo, arrebatamento. Eles parecem acordar de um sono profundo.
Como o próprio título do romance anuncia, Goethe foi buscar na ciência, sobretudo na química, o conceito que fundamenta o livro: há elementos que, por conta de traços intrínsecos, se atraem (ou não).
A obra foi escrita no auge do romantismo, movimento nas artes e no pensamento segundo o qual nós, seres humanos, embora sejamos dotados de racionalidade, estamos, também, subordinados a forças da natureza, da qual fazemos parte, ainda que nos coloquemos em um patamar de superioridade e distanciamento dessa nossa dimensão mais animalesca.
O filósofo iluminista René Descartes (1596 – 1650), ao associar a existência plena ao conhecimento, algo fundamental na construção da noção de indivíduo e do livre arbítrio, também nos colocou em um certo estado de desterro, exilados de nossa instância mais instintiva, emocional, como se ela fosse um território lodoso, movediço, capaz de nos engolir.
Em outro livro que também teve sobre mim um impacto sísmico, Alexis ou O Tratado do Vão Combate, publicado em 1929 pela escritora belga Marguerite Yourcenar (1903-1987), essa oposição entre emoção e razão também se configura.
O personagem-título aos poucos se revela, por meio de uma carta, a uma amiga (ou seria sua esposa?), admitindo, sobretudo a si mesmo, que levou toda sua existência, pelo menos até aquele instante, tendo como bússola a racionalidade, e suas conveniências, sem dar espaço a sua essência, a seus instintos.
Grandes livros, aqueles que nos atropelam e nos lançam, sem aviso, ao ar, permanecem circulando em nosso inconsciente muito tempo depois de termos chegado às suas últimas páginas. A literatura tem esse poder de nos revelar a nós mesmos.
Alexis, ao escrever para Monica, chegar a dizer que as pessoas tendem a subestimar o prazer por se tratar de uma sensação, portanto algo inferior, e não de um sentimento. Aos poucos, no decorrer do texto, vai se tornando mais ou menos claro que a missiva, na verdade, é uma longa despedida por escrito, que encerra de forma contundente: “Perdoa-me, não por te deixar, mas por ter ficado tempo demais”.
Tanto Goethe quanto Yourcenar parecem falar de um mesmo embate, talvez o mais essencial e atemporal à condição humana: em que medida não estamos conformados pela imposição de sermos racionais (e, assim, funcionais), arcando com um custo gigantesco, que seria a negação da matéria viva que nos integra, em nome de papéis sociais que nos foram impostos, ou que escolhemos na ânsia de encontrar um lugar no mundo para estar?
Dessa discussão, tiro uma certeza: grandes livros, aqueles que nos atropelam e nos lançam, sem aviso, ao ar, permanecem circulando em nosso inconsciente muito tempo depois de termos chegado às suas últimas páginas. A literatura tem esse poder de nos revelar a nós mesmos.