Ele é o motorista do ônibus da escola que me acusou, quando eu tinha 7 anos, de ter aberto a porta de emergência do veículo em movimento. Não quis me ouvir. Só apontou o dedo. Precisava de um culpado. Neguei, mas ele não acreditou em mim. Pouco importava se estava certo ou errado. Apenas sorria em sua certeza inventada, destilando o sadismo de quem sabe estar errado, mas desfruta, gota a gota, de uma ilusão estúpida de poder. Tinha prazer em vigiar e punir, pouco importa se fosse verdade ou não.
Ele é o vizinho do andar de cima que gritava com a mulher e os filhos o tempo todo. Noite e dia, como uma locomotiva sem freios, destrutiva. Os chamava de estúpidos, idiotas. Ouvia seus gritos e os passos pesados reverberando pelo prédio, a mão batendo na mesa, exigindo atenção, silêncio, obediência. Quando chegava bêbado, brigava com o porteiro, Deoclécio, e o chamava de “Paraíba burro!”. Nesses dias, batia na mulher, que chorava sem alarde, dolorosamente. Os soluços dela me acordavam de madrugada. Ouvia o ronco do homem, em seu sono triunfante, enquanto ela desabava em lágrimas na escada entre seu andar e o meu, de madrugada. Cigarro entre os dedos e a vida sempre por um fio. Ela se escondia fora de casa.
Ele é o colega de turma que debochava, nas aulas de Educação Física, dos meninos mais frágeis, gordos ou efeminados. Às vezes colocava o pé para tropeçarem quando corriam. Sussurrava palavras pontiagudas que feriam sem deixar rastros. Vinham sempre acompanhadas de risos provocativos, disparados da certeza de ser o dono do pedaço, aquele a ser obedecido. Mas era meio burro e tropeçava nas leituras em voz alta e não parecia entender o significado das palavras que saíam de sua boca. Orgulhava-se da ignorância que ostentava como um troféu.
Ele está em todo canto e é muitos em um. Tortura, persegue, fustiga, humilha, machuca, desdenha, regozija-se e mente. O tempo todo e, principalmente, para si mesmo, porque o engano lhe convém, o alimenta em seu delírio. Quer colocar ordem no mundo, mas é o caos, o terror, a destruição.
Ele é o policial que vi bater sem piedade como o cassetete num homem embriagado que dormia sob a marquise de meu edifício. Também chutava o bêbado com suas botas pretas, lustrosas, militares. “Acorda, vagabundo!”, “Sai daí! Vamos! Vamos!”, ele ordenava vertendo ódio na voz, sempre dura, inclemente. Uma vez o vi puxar os cabelos de outro sem-teto para olhar seu rosto contorcido de pavor. Quando me viu, o fitando do outro lado da rua, saiu andando, assoviando noite adentro, como um guri surpreendido fazendo uma traquinagem. Sem vergonha ou pudor.
Ele é o cliente que maltrata o garçom, como se fosse um escravo. Exige serviço de primeira, obediência disfarçada de cortesia, mas recusa-se a pedir por favor, ou a agradecer. Não olha quem o serve nos olhos, nem se interessa em saber seu nome, de onde veio ou o que pensa. Quer apenas rapidez, subserviência, medo em vez de respeito. Está pagando, afinal.
Ele está em todo canto e é muitos em um. Tortura, persegue, fustiga, humilha, machuca, desdenha, regozija-se e mente. O tempo todo e, principalmente, para si mesmo, porque o engano lhe convém, o alimenta em seu delírio. Quer colocar ordem no mundo, mas é o caos, o terror, a destruição. Ainda assim, se faz ouvir.
Ele é o fim.