Minha família paterna carrega um traço genético que gosto de chamar de defeito de fabricação. Muitos dos homens, inclusive meu pai e eu, andam nas pontas dos pés. Menino ainda, correndo descalço, ouvia que era um charme, herdado de figuras de espírito leve, que ao mal tocar o chão com os calcanhares, estivessem, talvez, querendo alçar voo, descolando-se da realidade.
Seríamos nós descendentes de Ícaro, aquela algo patética figura mitológica grega que construiu com penas de aves e cera asas para, na tentativa do rapaz de imitar os pássaros, despencar do céu com o calor do Sol? Nada disso.
Uma consulta demorada a um ortopedista renomado na época, hoje falecido, seguido de uma bateria de exames de raio-x, revelaram que, ao chegar a mim, os tais genes de Ícaro fizeram algum estrago. Era, sim, uma atrofia dos calcanhares de Aquiles, outro grego. Criado pela pena do poeta clássico Homero, trata-se do protagonista de Ilíada, figura heroica da Guerra de Troia, que sucumbe ao deixar exposto a uma flecha envenenada seus tendões, que seriam batizados pelos estudos da anatomia em sua homenagem.
Aos 15 anos, recebi um diagnóstico sombrio, que até hoje não tenho absoluta certeza ser verdadeiro, mas tão doloroso quanto uma flechada: se não fosse operado de minha perna direita antes que meu processo de crescimento terminasse, teria sequelas terríveis. Aguardavam-me, no futuro, desvios de coluna, dores em toda a espinha e, possivelmente, ficaria manco como o passar dos anos. A cirurgia não era, portanto, uma escolha. Tinha de entrar na faca e ponto final.
Lembro-me de ter feito o procedimento no Hospital São Vicente, à Rua Vicente Machado, e ainda internado, enquanto me recuperava da cirurgia, na qual meu tendão havia sido cortado e alongado com fios de platina, descobri Erico Verissimo. Caiu-me nas mãos Clarissa, seu romance de estreia, devorado em questão de dias. De alguma fomra, a personagem-título era eu e eu era ela.
Recém-chegada do interior do Rio Grande do Sul, Clarissa, uma adolescente dos anos 1930, se muda para a pequena pensão da tia em Porto Alegre, onde passa a conviver com adultos frustrados, atormentados pelas mazelas do cotidiano. Clarissa, que no livro era um pouco mais nova do que eu, vai descobrindo aos solavancos, a vida como ela é, um pouco como Anne Frank, em seu esconderijo no Anexo Secreto de Amsterdã.
Lembro-me de ter feito o procedimento no Hospital São Vicente, à Rua Vicente Machado, e ainda internado, enquanto me recuperava da cirurgia, na qual meu tendão havia sido cortado e alongado com fios de platina, descobri Erico Verissimo. Caiu-me nas mãos Clarissa, seu romance de estreia, devorado em questão de dias. De alguma forma, a personagem-título era eu e eu era ela.
A crueza, mas também beleza, da realidade que a cerca no limitado território da pensão, vai se revelando aos poucos a Clarissa. Verissimo, que se tornaria a partir dali um de meus escritores de cabeceira, descreve as pessoas e os ambientes que a cercam de forma quase fotográfica, minuciosamente. Como ela, eu também estava descobrindo um outro mundo, com a perna engessada por 40 dias, sem poder encostar o pé no chão.
Meu calcanhar de Aquiles me apresentou à literatura apaixonante de Erico Verissimo e me fez voar, ainda durante minha convalescença e de muletas, a Olhai os Lírios do Campo e a Um Certo Capitão Rodrigo. Décadas mais tarde, em companhia de amigos em Porto Alegre, que conheciam a neta do escritor, fui levado sem saber à casa onde morou os últimos anos de sua vida. Quando vi suas fotos espalhadas pelas paredes, sobre os móveis da sala, da qual não passei, quase ouvi a voz de Clarissa.