Nunca vi João Gilberto ao vivo. Mas o descobri relativamente cedo, graças, acreditem ou não, a uma novela de televisão. Eu devia ter uns 12 anos quando Espelho Mágico, de Lauro César Muniz, foi ao ar pela Rede Globo, em 1977. Era um folhetim de vanguarda, metalinguístico, que retratava os bastidores da teledramaturgia de forma surpreendentemente crítica para os padrões da época, quando a censura do regime militar ainda não dava tréguas. A produção, até hoje lembrada por sua ousadia formal, foi um fracasso de audiência.
Standard da canção norte-americana, “‘S Wonderful” foi composta originalmente por George and Ira Gershwin para Funny Face, musical da Broadway escrito em 1927 e adaptado para o cinema em 1957, com o título em português de Cinderela em Paris, com direção de Stanley Donen, o mesmo de Cantando na Chuva. O filme, com figurinos do estilista francês Henry Givenchy, retrata o mundo da moda, a partir da trajetória de uma jovem modelo, vivida por Audrey Hepburn, e sua relação com um fotógrafo (Fred Astaire).
Na voz de João, a sofisticação do romantismo de “‘S Wonderful”, faixa de seu álbum Amoroso, um dos mais importantes de sua carreira, se transfigura, se abrasilera. O impecável arranjo do maestro alemão Claus Ogerman (1930 – 2016) se molda à voz precisa, contida e cheia de nuances do cantor baiano, que sempre pareceu pedir licença ao silêncio para se fazer ouvir – e encantar. Desse mesmo álbum, que traz na capa uma pintura de Geoffrey Holder, veio uma deslumbrante versão de “Wave”, composição de Antonio Carlos Jobim. Essa canção também, creio eu, chegou pela primeira vez a mim graças a uma novela: Água Viva, super sucesso de Gilberto Braga, de 1980. Recordo que ouvia a gravação e era tomado por uma onda de nostalgia do Rio de Janeiro, cidade onde eu havia passado parte da infância e da adolescência, porque seus acordes e a suavidade precisa da interpretação de João me transportavam àquele lugar de afeto, a um tempo de delicadeza chamado bossa nova. “Vou te contar o que os olhos já não podem ver, coisas que só o coração pode entender.”
No sábado, quando foi divulgada a morte de João Gilberto, aos 88 anos, senti saudades de um Brasil que hoje me parece muito distante, quase utópico quando olho ao meu redor e enxergo tanta brutalidade no comportamento e nas palavras, institucionalizada nos discursos oficiais como se fosse algo natural ou, pior, desejado, equivocadamente confundida com austeridade.
No sábado, quando foi divulgada a morte de João Gilberto, aos 88 anos, senti saudades de um Brasil que hoje me parece muito distante, quase utópico quando olho ao meu redor e enxergo tanta brutalidade no comportamento e nas palavras, institucionalizada nos discursos oficiais como se fosse algo natural ou, pior, desejado, equivocadamente confundida com austeridade.
Hoje guardo, como um tesouro, passado tanto tempo, uma cópia de Amoroso em minha coleção de discos, ao lado de outros grandes álbuns, como Canção do Amor Demais (de Elizeth Cardoso). Construção e Meus Caros Amigos (de Chico Buarque), Elis e Tom (de Elis Regina e Tom Jobim) e Acabou Chorare (dos Novos Baianos), só para citar alguns.
Essas obras são atestados culturais de uma civilização à qual tenho orgulho de pertencer, antídotos contra a barbárie que se anuncia e em mim gera, quase diariamente, constrangimento, porque desmente o meu sonho, a minha utopia. Faço, assim, minhas as palavras do jornalista João Paulo Pimentel, que também no sábado postou nas suas redes sociais a seguinte frase: “O Brasil que eu queria era João Gilberto”. Um país sonhado.