De pé, a bordo do ônibus quase lotado, ele tenta ler seu livro. Não sei como consegue se concentrar, mas entendo suas razões. Parece equilibrar-se na dobra entre duas dimensões. De um lado, a vida real, cobrando-lhe equilíbrio, em todos os sentidos. Prefere, é claro, viajar sentado, mas nem sempre é possível e recusa-se a abrir mão daquele tempo precioso.
Na virada de cada página estão as possibilidades infinitas da palavra escrita, que o transportam para uma instância dentro de si, onde mesmo as contradições fazem mais sentido. Ler é, ao mesmo tempo, uma fuga e um encontro consigo mesmo. E ele, com os olhos que insistem em não se afastar do texto, desafia os solavancos no percurso, as conversas em voz alta no celular, o empurra-empurra a cada parada.
Não foram poucas as obras que foram avidamente consumidas no trajeto entre a casa e o trabalho. Embora não se limite a ler a bordo do ônibus, lembra com apreço especial as histórias nas quais mergulhou em trânsito. O Anjo Pornográfico, mirabolante biografia de Nelson Rodrigues assinada por Ruy Castro, foi lida ao longo de dois ou três meses nos anos 1990, entre o Portão, bairro onde morava, e a redação do jornal em que trabalhava na Vista Alegre.
Como era um trajeto longo, mas sem interrupções, que o permitia ler por 30, 40 minutos, dependendo do tráfego (às vezes torcia por um engarrafamento), conseguia percorrer várias páginas, e por vezes anos na vida atribulada do biografado, que fora repórter policial, cronista esportivo, romancista e dramaturgo sem paralelos nas letras brasileiras. O texto era tão envolvente que chegou, uma ou duas vezes, a perder o ponto localizado em frente ao trabalho e ter de caminhar algumas quadras, com Nelson pousado em seus ombros, a sussurrar-lhe obscenidades, a cutucar seu inconsciente com deliciosas perversões.
“Ler é, ao mesmo tempo, uma fuga e um encontro consigo mesmo. E ele, com os olhos que insistem em não se afastar do texto, desafia os solavancos no percurso, as conversas em voz alta no celular, o empurra-empurra a cada parada.”
Anos mais tarde, quando já lecionava em uma faculdade no Tarumã, e dava aulas de manhã e à noite, o que significava ter de fazer o mesmo itinerário duas vezes em alguns dias da semana, ficou obcecado pelo amor louco, desencontrado e obsessivo descrito por Mario Vargas Llosa em Travessuras de uma Menina Má.
Xingava em silêncio a passividade do protagonista diante do comportamento errático e manipulador da mulher amada, uma paixão semeada na primeira juventude do personagem e que devorou anos de sua vida, além da crença na possibilidade de um amor tranquilo, seguro.
Nas curvas, subidas e descidas percorridas pelos dois ônibus que pegava para chegar a seu destino, deixava-se levar por aquela paixão doentia e transcontinental, lembrando os riscos que já correra em sua própria vida amorosa, os excessos, erros e acertos. Dariam um romance? Talvez. Mas logo chegava a hora de desembarcar na vida real.
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Ensaio fotográfico de Bella See. Confira o trabalho da fotógrafa clicando aqui.