Quem carrega consigo os livros que leu ao longo da vida, de certa forma guarda, em cada volume mantido, um tanto da própria existência. Há algumas semanas, venho enfrentando o desafio de reorganizar minha biblioteca, tarefa que além de me fazer tossir, coçar os olhos incessantemente, graças à minha genética alérgica a tudo que permaneça guardado e longe do sol, também me lançou em um turbilhão nostálgico. O leitor que um dia fui confronta-se com o que me tornei, e confesso que, mais do que me confundirem, essas contradições que agora se espalham em uma nova lógica por minhas estantes, de certa forma também me revelam a mim mesmo,
Em uma edição algo desmantelada, com as páginas amareladas, manchadas pelo tempo, de O Cortiço, clássico naturalista de Aluízio de Azevedo, reencontrei os calores das minhas descobertas da puberdade. Lembro-me, com certa excitação, de tê-lo devorado aos 12, 13 anos, com bastante avidez. A obra desvenda a complexidade da sociedade carioca do fim do século 19, traçando um panorama exuberante, sensualíssimo, que discute conflitos de classe, preconceitos raciais e desejos carnais que transpõem muros e convenções. Brasil em alta dosagem, assim como em Capitães de Areia, romance fundamental de Jorge Amado sobre meninos da vida em Salvador, recomendado por uma professora do início do ensino médio que, ao perceber meu gosto por ler e escrever, colocou nas minhas mãos as aventuras de Pedro Bala e sua turma, no início da década de 1980.
Quem carrega consigo os livros que leu ao longo da vida, de certa forma guarda, em cada volume mantido, um tanto da própria existência.
Há quem defenda que não devemos nos apegar a livros, que se tornariam entes mortos, sem razão de ser, quando confinados às prateleiras do esquecimento. Relíquias acumuladas por uma vaidade intelectual. Chego a concordar com essa lógica. Tanto que já me desfiz de muitos títulos ao longo do tempo, certo de que estariam melhor em circulação do que retidos na minha restrita existência.
Acontece que meu desprendimento se rivaliza, em minha natureza contraditória, com o apego que tenho com tudo que de alguma forma me explica o mundo. Os contos e romances de Lygia Fagundes Telles, com toda elegância e sutileza de sua prosa, sua incrível capacidade de observação social, são pistas valiosas de um país mais inteligente do que aquele onde vivemos hoje. E o que dizer da floresta de sentidos e introspecção à qual nos conduzem os lindos romances amazônicos de Milton Hatoum, escritor que descobri já com mais de 30 anos? Mestre das palavras, e das imagens que com elas tece, ele se tornou um de meus favoritos no mundo das letras, falando de famílias e solidão, natureza e civilização.
Muitos de meus livros ainda permanecem em caixas, no aguardo por um espaço que os mereça. Outros já estão ao alcance de meus olhos, a me lembrar os universos por onde um dia passei ou onde ainda hei de mergulhar – há muitos que estão por serem lidos. Confesso que todas as possibilidades que neles pulsam me confortam, como terra à vista após uma longa jornada. São mapas possíveis que me guiam a outros mundos e para dentro de mim, repletos de possibilidades.