Quando a cineasta mineira Petra Costa lançou Elena, em 2012, vi algo bastante raro acontecer com um documentário no Brasil. Muitas pessoas ao meu redor foram profundamente tocadas pelo filme, no qual a diretora empreende uma jornada tão íntima quanto dolorosa: seguir os passos de sua irmã mais velha, personagem-título do longa-metragem, que ousou deixar o Brasil para tentar realizar o sonho de tornar-se atriz em Nova York, mas acabou sucumbindo à depressão. Com sete anos a menos, Petra a idolatrava, a via como espelho, e jamais conseguiu entender, ou aceitar, o que aconteceu a Elena. Para compreender essa dor, recorreu ao cinema.
Talvez o espírito de tempo seja capaz de explicar por que tantos se apaixonaram e falaram tanto de Elena, que fez uma bela carreira internacional, apesar de Petra também ter sido acusada por alguns críticos de exibicionismo, de banalizar sua dor e a de sua família, expondo o sofrimento de sua irmã. Desde já, deixo muito claro aqui que discordo. Não cabe ao mundo dizer ao artista como sofrer, impondo-lhe limites. Seria o mesmo que questionar o direito de Van Gogh de se autorretratar após decepar a própria orelha.
Passados sete anos desde Elena, Petra Costa volta a dividir opiniões, e causar comoção, com outro documentário. Lançado há pouco mais de duas semanas na plataforma de streaming Netflix, Democracia em Vertigem recorre a um dispositivo familiar. Narrado em primeira pessoa, o filme também fala de dor e de perda. Mas, desta feita, Petra passa em revista não apenas sua história pessoal e familiar, mas também a do Brasil, para dissecar em praça pública sua perplexidade diante dos rumos que o país tomou nos últimos anos.
Público e privado se entrelaçam de maneira fascinante.
A diretora fala de sua euforia e desilusão com os governos do PT, desde que Lula chegou ao poder, em 2003, mas não se priva tampouco de explicitar sua indignação com o processo arbitrário que levou ao impeachment sua sucessora, a presidente Dilma Rousseff, em 2016, e à eleição, ano passado, do candidato do PSL Jair Bolsonaro, que surge na tela como uma figura nefasta.
Petra é, assumidamente, um paradoxo ambulante, um poço fascinante de contradições. Dessa tensão vem a beleza maior de ‘Democracia em Vertigem’, da coragem de não ter a ambição de fazer julgamentos definitivos, de esclarecer intelectualmente o enigma sombrio em que o Brasil está mergulhado.
Neta de uma das famílias proprietárias da empreiteira Andrade Gutierrez, mas também filha de pais militantes de esquerda, que se exilaram durante a ditadura militar, Petra é, assumidamente, um paradoxo ambulante, um poço fascinante de contradições. Dessa tensão vem a beleza maior de Democracia em Vertigem, da coragem de não ter a ambição de fazer julgamentos definitivos, de esclarecer intelectualmente o enigma sombrio em que o Brasil está mergulhado. Em vez disso, Petra opta por, mais uma vez, revelar o impacto que tudo teve e tem sobre a sua subjetividade, desnudar o que sente.
Do universo particular de Petra irradia uma luz intensa, ainda que não seja aquela capaz de fornecer respostas. Ele questiona, mexe no lodo, explicita a vertigem de não sabermos onde estamos ou para onde iremos. Precisamos falar sobre a indignação, o sofrimento, o medo e a incerteza, ainda que não saibamos a solução, evidenciando que estamos presos a estruturas de poder seculares das quais não conseguimos escapar.
A incoerência coerente de Petra me encanta, porque com ela me identifico na sua busca por expor-se, revelar-se, criando uma obra singular e preciosa tanto para o Brasil quanto para o cinema que aqui se faz.