A primeira grande entrevista coletiva da qual participei como jornalista cultural foi com Maria Bethânia. O ano era 1996 e ela lançava o belo (e algo subestimado) álbum Âmbar, título da canção que a compositora gaúcha Adriana Calcanhotto, sua amiga pessoal, escreveu especialmente para que gravasse.
Quando soube que iria entrevistar Bethânia, no Rio de Janeiro, um filme passou pela minha cabeça. A voz da baiana, de certa forma, havia embalado minha história familiar. Seus álbuns, primeiro no formato de LPs e, mais tarde, em CDs, sempre povoaram a coleção de discos de meus pais, e, depois, a minha própria discoteca, que herdou muitos desses títulos mais antigos que compunham o tesouro musical familiar.
A lembrança mais remota que guardo da voz de Bethânia é no disco Drama, lançado em 1972. Eu tinha 6 ou 7 anos, e o LP, que traz na capa o expressivo perfil da cantora, foi presenteado a minha mãe por um tio e, tão logo chegou a nossa vitrola, não parou mais de tocar. Rodou durante muito tempo, ao ponto de eu decorar as letras das músicas.
Trazia canções que se tornariam clássicos no repertório da artista, como “Volta por Cima” (de Paulo Vanzolini) e “Esse Cara”, escrita por seu irmão, Caetano Veloso, que também assinava a faixa-título, cujo verso final soou na minha cabeça de menino como algo sinistro, enigmático: “Drama/E ao fim de cada ato/Limpo no pano de prato/A mão suja do sangue das canções”.
Não eram músicas exatamente adequadas para um garoto de 6, 7 anos. Mas, de alguma forma, colaram em minha memória, e tiveram, penso eu, papel fundamental na construção de meu gosto musical. Meses mais tarde, Drama daria lugar ao primeiro LP dos Secos & Molhados, que fizeram minha infância bem mais divertida, ao mesmo tempo que subvertiam, sem que eu soubesse, os bicudos tempos de ditadura militar que o país enfrentava.
De volta a 1996, lá estava eu, caminhando pelas ruas do Rio de Janeiro, cidade da minha infância, onde já não morava mais há quase 20 anos, revisitando essas lembranças, enquanto aguardava a entrevista com Bethânia. Desembarcara bem cedo naquele mesmo dia e, em uma espécie de ritual que decidi seguir quando pus os pés em solo carioca, passei a pé por lugares significativos de minha infância e pré-adolescência: o colégio, o edifício onde morara, o prédio da melhor amiga. Tudo parecia igual. Menos eu. Então, cauteloso, decidi manter distância.
A coletiva aconteceu, no meio da tarde, na Villa Riso, espaço hoje dedicado a eventos no bairro de São Conrado, que já foi, lá pelos idos do século 18, uma grande fazenda cujas terras se estendiam até a Gávea. E foi na antiga casa grande da propriedade, uma bela construção em estilo colonial, que vi Maria Bethânia entrar em cena. Não para cantar, mas para falar de Âmbar, que havíamos escutado durante pelo menos um hora antes do início da entrevista.
Os versos que iniciam a canção-título, que eu acabara de descobrir, fez muito sentido quando pousei os olhos sobre Bethânia, pela primeira vez fora de um palco, sentada na ponta de uma grande mesa de madeira, a um par de metros de distância: “Está tudo acesso em mim/Tá tudo assim tão claro/Tá tudo brilhando em mim”.
Toda de branco, serena, bem-humorada, ainda que incisiva e sempre algo teatral em suas respostas, Bethânia, que me pareceu menor e mais frágil assim de perto, falou por mais de uma hora, respondendo generosamente todas as perguntas, que percorreram o processo de criação do disco e sua carreira, que já ultrapassa hoje em dia a quarta década.
“De olhos acesos, arqueando as sobrancelhas, denunciando uma certa surpresa com o tom tão direto da pergunta, Bethânia respondeu, com firmeza: ‘Diga o que quiser, mas, por favor, seja gentil!’.”
Dessa tarde, além da dedicatória no encarte de Âmbar, que até hoje guardo, onde se lê “Paulo, um beijo, Maria Bethânia”, restou, como vestígio, o fragmento de uma de suas respostas.
Um jornalista, crítico musical cujo nome prefiro respeitosamente omitir, disparou: “Bethânia, posso lhe dizer, com toda a sinceridade, o que achei do disco?”, indagou em tom implacável, referindo-se ao álbum que acabávamos de ouvir pela primeira vez. O salão foi tomado pelo silêncio.
De olhos acesos, arqueando as sobrancelhas, denunciando uma certa surpresa com o tom tão direto de pergunta, Bethânia respondeu, com firmeza: “Diga o que quiser, mas, por favor, seja gentil!”. Rimos, todos, inclusive o jornalista, e a tensão, momentânea, se dissipou como uma névoa em um dia de sol. Não é que ele até havia gostado bastante da Âmbar, apesar de algumas poucas ressalvas em relação ao repertório, que ela ouviu com toda a atenção.
A gentileza, por fim, prevaleceu.