Sábado passado, eu ouvi a voz de Deus. Poucas experiências estéticas para um brasileiro se aproximam do que pode causar o canto de Milton Nascimento, um dos maiores nomes da música mundial, digo sem receio de soar exagerado, ou ufanista. Quem já teve a oportunidade de escutá-lo ao vivo sabe do que estou falando. A arte de Bituca, apelido do artista, seja quando chega a nós por meio de sua obra, seja carregada pelas sonoridades divinas que carrega em suas cordas vocais, é um tesouro da cultura do país
O Teatro Guaíra transformou-se, por perto de duas horas, no mítico Clube da Esquina, espetáculo-homenagem ao álbum homônimo lançado em 1972, marco da música brasileira. O show também é tributo ao movimento musical nascido em 1963, da grande amizade entre Milton e os irmãos Borges (Marilton, Márcio e Lô), no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte. Foi lindo de chorar.
Em um primeiro momento, causou certo choque perceber a fragilidade do corpo de Milton sobre o palco do Guaírão. Caminhando com dificuldade, a passos miúdos, algo hesitantes, em alguns momentos o cantor e compositor necessitava de ajuda para deslocar-se em cena. Essa vulnerabilidade, ainda que evidente, e corajosamente assumida pelo artista, acabou por potencializar, no entanto, o encontro do público com a força da natureza que continua sendo a sua voz, que em muitos momentos levou a plateia lotada ao delírio. E não apenas por conta de sua inegável beleza, mas porque cada música, de alguma forma, trazia em suas letras e acordes rastros de nossa história coletiva, compartilhada por todos que estávamos ali, a ouvi-la.
Sábado passado, eu ouvi a voz de Deus. Poucas experiências estéticas para um brasileiro se aproximam do que pode causar o canto de Milton Nascimento, um dos maiores nomes da música mundial, digo sem receio de soar exagerado, ou ufanista.
O cenário, criado pelos grafiteiros Gustavo e Otávio Lindolfo, os Gêmeos, mostram dois garotos, um negro e outro branco, como da mítica capa do LP de 1972. Mas também podem ser Milton e seus muitos parceiros, como Fernando Brandt, Ronaldo Bastos ou Márcio Borges, que convenceu Bituca, ainda um baixista convicto, a render-se a sua musicalidade inerente e tornar-se compositor. A “conversa”, contou Milton no show, aconteceu em Belo Horizonte, após ele e o amigo passarem o dia inteiro a assistir a sessões sucessivas de Jules e Jim – Uma Mulher para Dois, clássico de François Truffaut.
Conhecido por sua timidez, Milton também, como bom mineiro, gosta de uma prosa e acabou presenteando o público do Guaíra no sábado com alguns “causos”. Dez anos mais velho do que Lô, irmão caçula de Márcio, Nascimento lembrou quando o garoto, convidado por ele, foi a um boteco de BH e pediu, em vez de um refrigerante, uma batida de limão, copiando o pedido de Bituca. “Ali, percebi que ele não era mais um menino.” Dessa aproximação, espécie de rito de passagem para Lô, surgiram faixas incontornáveis do movimento Clube da Esquina, como “Tudo Que Você Podia Ser” e “Um Girassol da Cor do Seu Cabelo”, compostas por ele e seu irmão Marcio, todas cantadas no último sábado.
Para falar da instrumental “Lilia”, outra faixa do álbum de 1972, Milton revelou que a música, batizada em nome de sua mãe adotiva, foi composta em um violão a ela dado de presente pela “coragem” de criá-lo como filho. “Não tem letras porque não há palavras que façam justiça à mulher maravilhosa que ela foi.”
A outra voz
Não seria justo falar do show “Clube da Esquina” sem dedicar algumas linhas a Zé Ibarra, integrante da banda Dônica, que no palco evoca o papel de Lô, grande parceiro no álbum de 72. Dono de uma belíssima voz, capaz de alcançar os agudos arrepiantes de “San Vicente”, ele também desempenha o papel de vocalista na banda arregimentada por Milton, com Wilson Lopes na direção musical, guitarra e violão. Em alguns momentos, fica Zé sozinho no palco, brilhando pelas mãos de Milton, conhecido por, ao longo de toda a sua carreira, sempre ter incentivado novos talentos. Juntas, sua voz com a de Milton funcionam em perfeita harmonia.
Em uma catarse coletiva, que fez o público aplaudir o show de pé mais de uma vez, Milton encerrou o espetáculo de sábado com uma canção que não pertence ao Clube da Esquina, LP ou movimento: “Paula e Bebeto”, uma rara parceria dele com Caetano Veloso. Os versos da música, de 1975, gravada pela primeira vez por Gal Costa em seu histórico álbum Água Viva (1978), ganharam 44 anos mais tarde um potente significado político no palco do Guairão. “Qualquer maneira de amor vale a pena/Qualquer maneira de amor vale amar”, cantou a voz de Deus. Ouvi, com o coração feliz.