Hoje seus cabelos e barba estão totalmente brancos. Deve estar chegando aos 70 anos, mas não são exatamente as rugas em seu rosto magro, expressivo de um modo reticente, que denunciam a idade. Eu a calculo, porque há mais de três décadas eu o vejo pela cidade sem que nunca tenhamos sido apresentados, nem perto disso. Fico a me perguntar se ele também me reconhece. Tenho a sensação de que não: seu olhar parece ver através de mim, como se fosse transparente, não existisse. Já eu, não. Eu sempre o vi. Em bares e cafés do Centro, a caminhar pelo calçadão da XV, talvez em restaurantes. E, certamente, nos cinemas, muitas e muitas vezes. Desde, sei lá, os anos 80. Sozinho, nunca acompanhado. A não ser de livros ou de jornais, debaixo do braço.
De uns tempos para cá, eu o tenho visto com mais frequência. A vida, por ironia, talvez nos tenha feito vizinhos, depois de tanto tempo. Eu tropecei nele algumas vezes no supermercado e na padaria da esquina, aonde vou quase todos os dias. Às vezes está lá, bebendo café ou comprando pão. Não engordou nem emagreceu nestes anos todos, as roupas são muito parecidas: calças jeans, camisas sociais de cores discretas – tons de azul, cinza, branco – e jaquetas de tecido ou de lã, quando o tempo esfria. É como se eu o conhecesse por toda uma vida. Mas não, nem mesmo o seu nome eu sei.
Hoje seus cabelos e barba estão totalmente brancos. Deve estar chegando aos 70 anos, mas não são exatamente as rugas em seu rosto magro, expressivo de um modo reticente, que denunciam a idade. Eu a calculo, porque há mais de três décadas eu o vejo pela cidade sem que nunca tenhamos sido apresentados, nem perto disso. Fico a me perguntar se ele também me reconhece.
Noutro dia, no caixa da padaria, uma das atendentes lhe perguntou se era professor. Fiquei atento, porque sempre achei que pudesse ser. “Não, sou funcionário público”, respondeu, com um meio sorriso, antes de vestir de novo a máscara. Ao longo dos anos, e meio sem querer, acabei criando para ele uma identidade, uma mini biografia imaginada: seria um intelectual modesto, frequentador de sebos, talvez colecionador de livros. Certamente de esquerda. Cheguei a pensar lá pelos anos 90, talvez por tê-lo visto uma vez numa banca comprando um exemplar da Tribuna Operária, que fosse um comunista velho de guerra, talvez professor. Fui desmentido.
Tenho quase certeza, a esta altura, de que ele é um homem só. Ou, quem sabe, goste de estar sozinho quando fora de casa, na rua. Como eu, é um pedestre convicto, andarilho. É surreal constatar que atravessamos quase uma vida vendo alguém sem jamais saber quem, de fato, é. Nunca houve um cumprimento sequer, um aceno, o que, convenhamos, não chega a ser tão surpreendente em um cidade introvertida como Curitiba. Somos, enfim, velhos desconhecidos. De toda uma vida.