Uma crença antiga – e por antiga, quero dizer pré-revolução digital – pregava que quanto mais processos manuais fossem informatizados, mais tempo os trabalhadores teriam para gastar com o que realmente importa: lazer, família, prazeres em geral. Afinal, a vida é tudo o que acontece antes das oito da manhã e depois das seis da tarde. Talvez os cavalos pensassem algo parecido, em cavalês, quando viram os primeiros veículos a motor. Enfim. O mito, que caiu por terra sem que muita gente atentasse para o fato (já que a maioria estava afundada em manuais operacionais e novos empregos computadorizados), pode dizer muito sobre as narrativas ficcionais que o capitalismo nos constrói para nos manter produtivos, como burros correndo atrás da cenoura amarrada no graveto, mas talvez diga mais ainda sobre nós.
Uma crença antiga pregava que quanto mais processos manuais fossem informatizados, mais tempo os trabalhadores teriam para gastar com o que realmente importa: lazer, família, prazeres em geral. Afinal, a vida é tudo o que acontece antes das oito da manhã e depois das seis da tarde.
Digo isso porque cá estou em um fim de semana chuvoso com bastante tempo livre às voltas com livros grossos de crítica literária para um artigo complicado que preciso escrever. Digo que preciso porque há uma necessidade íntima nessa minha pequena produção, não porque o mundo ou alguém dependa disso para sobreviver. Tem tudo o que uma demanda semi-acadêmica deve ter: prazo, tamanho, trechos transcritos, ideias organizadas de maneira didática e, ao fim e ao cabo, uma cenoura hipotética, que muda conforme os estágios do trabalho. A primeira cenoura pode ser a consciência da capacidade de produzir algo que, antes da leitura desses livros, pareça fora do meu alcance. Essa cenoura não se sustenta quando o texto começa e a empolgação dá lugar a uma calma intelectual necessária para organizar as ideias. Agora a cenoura é a capacidade de ser conciso, informativo, ser o professor que nunca fui. Talvez uma cenoura futura possa se materializar na forma de um comentário do tipo “li seu artigo, foi muito esclarecedor e me incentivou a ler ou escrever tal coisa” – talvez seja essa a cenoura de todo professor, não sei. Assim por diante, até que o trabalho esteja escrito e eu descubra que o bolo, ou a cenoura, para manter a coerência da alegoria, é uma mentira.
No fim, a dança das cenouras sustentam as mentes inquietas e aceleradas que a sociedade movida à fibra ótica e cafeína produz em escala industrial nos dias de hoje. O tempo livre deixou de ser uma recompensa encerrada em si. Tempo livre para trabalhar com algo mais satisfatório do que o labor do pão, quem sabe. Quem sabe amanhã, ou semana que vem, eu consiga ver a graça de tomar um suco de laranja e contemplar o nada em uma rede enquanto mosquitos me picam e pintas se formam na minha pele. Hoje, porém, só há trabalho. Deus que me livre de ter que conviver com meus próprios pensamentos se algum dia não tiver nada para fazer.