Já faz três meses mais ou menos que um amigo, cuja identidade decidi preservar, em respeito à sua pessoa e em resposta a certos escritores, me empresta sua vasta e belíssima coleção de música erudita para que eu transfira tudo para o meu iTunes. No começo sem muita ambição além de ter algumas coisas básicas no iPod, mas depois de forma mais criteriosa. É curioso como sinto (sente-se) uma necessidade de se classificar quanto à afinidade com a música erudita antes mesmo de começar a falar sobre ela. Sou leigo. Sou apreciador. Sou perito. Tentarei fugir disso tanto quanto será possível, mesmo sabendo do peso que determinado tipo de música carrega na nossa sociedade (lembro de Caetano envergonhado, comprando Mozart e Beethoven discretamente, temendo ser considerado um esnobe).
Para quebrar o gelo, vamos lá: comecei a me (re)interessar por música erudita quando ouvi a rapsódia húngara de Liszt para além do Tom & Jerry, na execução de Valentina Lisitsa. A escala cigana que salta aos ouvidos, em tons sombrios e algo cômicos, me emociona e me enerva ao mesmo tempo. Que outras músicas teriam esse poder de despertar sentimentos complexos foi o que me motivou a ir atrás de outras peças, a princípio para piano. Fui caminhando até descobrir o prelúdio em sol menor de Sergei Rachmaninov, ágil, militaresco e gracioso. Ora, era um bom caminho a seguir, pensei.
Que Villa-Lobos era mesmo moderno, que Stravinsky era mesmo maluco, que Russo, Gershwin e Ravi Shankar tiveram muito a acrescentar e que não existe modinha: se a nona do Beethoven é tocada à exaustão, é porque é realmente impressionante e dificilmente vai deixar de ser.
Foi aí que entrou esse meu amigo e sua extrema fé em me confiar seu precioso acervo. Trato cada disco com a reverência de um Ovo Fabergé, e passo madrugadas copiando músicas e descobrindo tudo o que há para descobrir. Da importância do refrão para Tchaikovsky à sensibilidade inacreditável de Schubert no piano de Maria João Pires. Que gosto mais de românticos do que de clássicos (mas que isso pode mudar), que barrocos têm lá suas nerdices que não devem ser contrariadas, que Arvo Pärt é bom demais para eu nunca ter ouvido falar dele, que Placido Domingo é quem ele é quando canta Mahler, que Vivaldi tem coisas nada cafonas, que Roberto Szidon não usava tanto pedal quanto deveria e que Catulli Carmina foi eclipsado por Carmina Burana mas não deveria. Que Villa-Lobos era mesmo moderno, que Stravinsky era mesmo maluco, que Russo, Gershwin e Ravi Shankar tiveram muito a acrescentar e que não existe modinha: se a nona do Beethoven é tocada à exaustão, é porque é realmente impressionante e dificilmente vai deixar de ser.
Disse que não ia me qualificar quanto à música erudita, mas depois do parágrafo acima, preciso grifar: sou um completo leigo no assunto, apesar do ar pedante que as primeiras descobertas despertam em (acredito) qualquer um. E gosto de ouvir sem muita pedagogia mesmo. Ouço em casa enquanto desenho ou em algum lugar público, enquanto leio. Mas ainda não consigo correr na esteira ouvindo Chopin, como uma personagem no seriado Dexter me fez acreditar ser possível. Para os grandes esforços da vida, ainda recorro ao And Out Come the Wolves, ao Coaster, ao Tested e outros discos importantes da minha adolescência. Para o repouso depois dos quilômetros, uma música aquática vai bem.