Dia desses, um amigo veio me contar, pela internet, que sofrera um acidente doméstico dos mais trágicos. Escorregara no chão da cozinha enquanto lavava a louça e, de cara no chão, abriu um buraco na face direita que, depois de fechado com sete pontos, invariavelmente vai deixar uma cicatriz grande. Não é preciso dizer que ele estava desolado, não só diante da perspectiva de se ver, para o resto de seus dias, com uma deformidade no rosto, mas também pela banalidade do que a causou. Como homem, esperava ganhar cicatrizes, se isso fosse realmente algo inescapável, com uma briga na rua, um acidente automobilístico ou qualquer outra coisa um tanto mais digna do que escorregar enquanto enxagua um pires. Paciência sobre as circunstâncias da vida. O que o deixava realmente preocupado agora era, obviamente, sua aparência.
A perspectiva de conseguir o oposto de sexo com o sexo oposto a partir de uma fatalidade como essas, que não altera em nada o eixo da existência a não ser nesse ponto – diferentemente, digamos, de um aleijamento da cintura pra baixo que coloca tudo sob um novo ponto de vista – ocupa realmente todo o pensamento. A extensão do domínio da luta, como hiperbolicamente caracterizou Michel Houellebecq, é injusta como todo o resto do espectro humano. Tão fácil para uns, os garanhões, os pragmáticos, as meninas libertas das amarras do monstro chamado patriarcado, tão difícil para outros, os rejeitados, os esquisitos, os quebrados e, claro, os deformados.
A extensão do domínio da luta, como hiperbolicamente caracterizou Michel Houellebecq, é injusta como todo o resto do espectro humano.
Fato é que essa coisa toda nunca foi fácil pra mim, mas principalmente para ele, que tomou mais antibióticos do que deveria quando era apenas um bebê e terminou com um intestino pouco funcional aliado a um metabolismo muito rápido. Traduzindo: magro de ruim, desses capazes de perder um quilo por dia se não comer direito. O bullying na escola também não ajudou, e apanhou um bocado por usar uma merendeira até uma idade em que tal acessório escolar se torna discriminatório para dizer o mínimo. Pra piorar, começou a gostar de rock industrial em uma cidade predominada pelo funk e pelo pagodinho dos anos 90, e o cabelo comprido e as roupas andrógenas, enquanto capturavam certo olhar interessado e desajustado aqui e ali, fez mais mal do que bem no saldo final. Diante disso, contemporizei, o que é um corte na cara? Tentei, sem soar como uma espécie de guru, fazer com que meu acidentado amigo entendesse que a vida até aqui foi uma vitória, e pouca coisa pode mudar diante de tal fleuma. Cada desvio do caminho bem-trilhado é uma cicatriz acumulada na alma, e todas elas são percebidas por quem quer que seja. Ainda bem que há quem goste.