Lembro de ter visto o escritor Daniel Pellizzari ironizando no Twitter que, após a pandemia, o mercado editorial seria invadido por uma vasta bibliografia ficcional e não ficcional sobre a quarentena. Relatos de pessoas trancadas em casa, as mudanças que o Covid-19 causou no mundo e toda a sorte de autoajuda que se seguiria daí. Acho que naquela época ele, assim como quase todo mundo, imaginou que o confinamento seria um episódio passageiro, coisa de algumas semanas, e essa percepção é extremamente importante para que a piada seja engraçada.
De fato, tal como a eleição de Bolsonaro trouxe uma série de preocupações aos ficcionistas, imediatamente novos livros começaram a tratar da realidade. A pontuar o momento – algo que a literatura nunca deixou de fazer, afinal. A editora Boitempo continua publicando a coleção Pandemia Capital, com ensaios de filósofos sobre o coronavírus. A escritora Gisele Mirabai publicou o romance Ana de Corona, sobre uma ambientalista infectada pelo vírus em meio a outros problemas. Joca Reiners Terron pensa em um artigo sobre o ofício de escritor em meio à pandemia, e Paulo Scott adapta seu tradicional encontro “De Modo Geral” para o formato de podcast, para continuar conversando com outros autores de casa. Pellizzari sabia que estava certíssimo, mas talvez não esperasse a rapidez da produção, inversamente proporcional à duração do confinamento.
Eu, que também surfei na ondinha do Covid para fazer minhas últimas crônicas – essa difícil tarefa de ler a realidade de dentro do seu quarto – já não vejo mais sobre o que mais poderemos escrever.
E eis que chegamos até aqui, até este texto. Eu, que também surfei na ondinha do Covid para fazer minhas últimas crônicas – essa difícil tarefa de ler a realidade de dentro do seu quarto – já não vejo mais sobre o que mais poderemos escrever. Que a minha imaginação curta não seja um vaticínio para toda a massa de ficcionistas do meu país, mas é oficial: a realidade atual, o “novo normal”, como dizem, é demasiado curto para se permitir maiores observações. Claro, poderia continuar ordenhando essa vaca modorrenta e narrar de forma literária o mutirão que fazem me meu condomínio, ou falar da gentil médica do 208 que se oferece para renovar receitas de medicamento contínuo para quem não pode sair de casa, ou ainda dizer que eu não fiquei gripado ainda esse ano, tamanho é o isolamento social e o benefício do uso das máscaras. Mas essa realidade satura muito fácil. Talvez agora recorrer à ficção pura, descolada da realidade, seja a saída. Mas talvez a visão se estreite com a progressiva falta de vivências. A crônica rubembraguiana é, com certeza, uma vítima menor do Covid-19, principalmente porque já era uma forma de escrita menor dentro da atual apreciação literária. E tudo bem, as lentes sempre se ajustam às novas miopias.
Todo dia faça algo pela primeira vez. Ontem espirrei num ciclista, mas estava de máscara. Hoje já não fiz nada.