Se me perguntassem qual é o povo mais amigável que eu conheço, diria que é o povo sérvio, e contaria uma história. Ela começaria assim: eu estava em Budapeste em um dia modorrento e descobri um serviço de transfer chamado Geo Tours. Por módicos 25 euros (não tão módicos naquela região, mas vá lá), uma van te apanha onde você quiser em qualquer localidade na Sérvia ou em qualquer país vizinho, e te deixa no endereço que você desejar dentro do país de Slobodan Milosevic. Pra quem mora no Brasil e admite histórias de terror envolvendo turistas e vans como parte do fabulário de sua cidade mais turística, a coisa parece muito suspeita, principalmente se 25 euros soa como merreca diante de um serviço exclusivo desses e se as imagens do massacre de Srebrenica e de filmes de mafiosos sérvios ocupam sua mente desde criança.
Mesmo assim, resolvi arriscar e agendei, via e-mail, uma viagem para aquela noite. A resposta lacônica veio pouco tempo depois: “Espere no seu endereço entre onze e meia e meia-noite, estaremos aí”. Sem tempo para interpretar entonações em uma mensagem escrita, me concentrei no problema real que tinha em mãos: Marina, minha anfitriã em Belgrado, não poderia me receber no momento em que a van chegasse à capital – ali por volta de quatro da manhã, um horário desaconselhável para se perambular na rua, diga-se. De maneira que recorri às mensagens de um sérvio que havia me escrito há alguns dias, quando manifestei na internet minha vontade de visitar Belgrado. Alexsandar tinha uma cara de combatente e vestia um casaco militar surrado em suas fotos, mas parecia uma boa pessoa, então lhe expliquei minha situação. Para minha surpresa, ele disse que não havia problema nenhum da parte dele, mas que talvez houvesse da minha. Ele morava em Nova Belgrado, e, seguindo a regra brasileira, qualquer lugar que se chama Nova alguma coisa é necessariamente uma região afastada e barra-pesada de alguma forma. “Diga ao motorista que eu moro no Blok 72, ao lado do café [cujo nome eu esqueci]. É melhor explicar porque nem os correios conseguem se achar direito por aqui”, me escreveu Alexsandar. Ele morava na rua Yuri Gagarin (Jurija Gagarina, na declinação iugoslava), e achei espirituoso ficar algumas horas e ver o meu primeiro nascer do sol nos Balcãs na rua que homenageia o cosmonauta que meu pai homenageou ao batizar seu único filho. Mas estava achando aquela conveniência toda muito suspeita. Não era normal que as pessoas não tentassem ser malandras nessas situações.
Às onze e meia, desci as escadas do prédio velho que me abrigou durante alguns dias na rua Teréz Korut e de fato havia uma van branca com o pior esterótipo sérvio possível: um sujeito careca, mau-encarado, com um brinco de argola e moletom cinza e roxo da Adidas falando em um inglês horroroso: “Geo Tours? My name Vlad. Come, come, no problem”. Algum assustado que só sabe sentir cheiro de roubada teria dado meia volta e fingido que o lance não era com ele, mas não dá pra viajar como eu viajo – quase sem dinheiro e contando com a hospitalidade de estranhos – tomando susto toda hora. Sinto decepcionar quem esperava o pior: Vlad era um cara legal, e conversamos sobre a estrada e sobre a época da guerra, enquanto outros quatro passageiros apanhados no aeroporto Férenc Liszt babavam nos bancos de trás.
“Algum assustado que só sabe sentir cheiro de roubada teria dado meia volta e fingido que o lance não era com ele, mas não dá pra viajar como eu viajo – quase sem dinheiro e contando com a hospitalidade de estranhos – tomando susto toda hora.”
Eventualmente também cochilei, e acordei com Vlad me batendo no ombro e dizendo “Jurija Gagarina here”. Desci em um cenário inóspito: para onde quer que eu olhasse, imensos blocos habitacionais, semelhantes a uma cohab, todos cinzas e escuros. Nenhuma viva alma na rua e um vento gelado cortando a cara. A van me deixou e seguiu viagem e eu não sabia pra onde ir. Permaneci com uma cara de perdido durante alguns minutos antes que um sujeito de roupão aparecesse por trás de um dos prédios e me chamasse enquanto ria da minha situação desoladora de turista perdido na quebrada de Belgrado. Era Alexsandar.
Passado o clima desnecessário de terror adolescente que tentei criar nos parágrafos acima, um resumo: Alexsandar me esperava com roupas de cama limpas e vários cobertores em um quartinho nos fundos do apartamento dele, me deixou dormindo por mais três horas, me ofereceu café da manhã com burek e café turco – que basicamente se faz jogando o pó não solúvel na água fervente e desejando boa sorte a todos – me explicou que todos os criminosos de guerra julgados em Haia já se esconderam em seu prédio, pagou minha passagem de bonde até Belgrado já que não tinha nenhum dinar comigo e me levou para conhecer o histórico bairro de Zemun dias depois. Na casa de Marina, uma cigana de alma Otaku, a generosidade se repetiu. Ela e Nebosja, seu companheiro de apartamento bósnio, até baixaram os espisódios de Game of Thrones que eu tinha perdido durante a viagem para que pudéssemos ver o episódio novo juntos. Na rua, qualquer informação que eu pedisse era uma nova amizade em potencial, e bebi a rakia, um destilado a base de ameixa ou marmelo de 51% de graduação alcóolica, com muitos desses desconhecidos. As mulheres se encantavam comigo e em cada noite que passei na cidade, saí com uma diferente para conhecer um novo canto da cidade, novos amigos e novas histórias.
Deixei Belgrado em uma quarta-feira chuvosa em direção a Kosovo. Era o começo da maior enchente já registrada na história do país. Em outros lugares, me disseram que o sérvio não é esse povo amigável que eu encontrei, que são perversos, criminosos e que se você é negro, homossexual ou mulher desacompanhada, é altamente desaconselhável andar em algumas partes de Belgrado de madrugada. Devo ter dado sorte, porque ouvi a advertência, mas não computei. Deixei parte do meu coração na Sérvia com essa minoria pós-graduada na hospitalidade do pós-guerra.