Estou com frio, e o casaco mais quente que eu tenho atualmente no meu armário é um sobretudo original do Exército soviético que pesa seis quilos, tem alguns botões a menos, é afunilado na cintura – dando a ele um ar desnecessariamente feminino – e guarda em si um cheiro de velho que não sai nunca, nem com as várias lavagens que já fiz nele.
Cinco minutos depois de vesti-lo, já se sente a dor nos ombros e na nuca. É o peso do trambolho que trouxe na mala de uma viagem à Letônia que fiz há dois anos. Riga, a capital, já foi um porto glorioso no Mar Báltico, mas hoje vive do decadente centro histórico e dos baladeiros da região que encontram ali algumas das mulheres mais bonitas da Europa. E, obviamente, uma forte indústria de drogas e prostituição sustentada pela máfia russa – etnia que compõe quase metade da população do país. O centro da máfia fica em um bairro chamado Maskavas Forštate, “pequena Moscou”, ou “subúrbio moscovita”, originalmente um gueto judeu, hoje ocupado principalmente por russos e bielorrussos. É lá que fica o mercado negro russo, uma atração turística bem estabelecida repleta de mercadorias de procedência duvidosa, onde você pode ter a sorte de comprar de volta o seu celular furtado pelas ruas do centro histórico. A recomendação para os turistas é sempre a mesma: não ir sozinho e, principalmente, não ir à noite. De preferência, não ir.
Visitei o subúrbio moscovita em um domingo à tarde, quando estava decidindo o que fazer na cidade. Marko, um eslovaco que havia corrido uma maratona na cidade um dia antes, disse que sabia o caminho para o mercado negro, e pedi para que fôssemos até lá. Não era muito distante de onde estávamos, afinal. Marko sabia algumas coisas em russo para além do meu conhecimento na língua eslava, que era bem pouco, então ele poderia ser bem mais útil do que uma agradável companhia em uma cidade muito difícil de se viver sem uma agradável companhia.
O mercado negro era uma visão e tanto. A princípio, não diferia muito de um pátio de ferro velho, com barraquinhas de lona e ferro instaladas por toda parte. As mercadorias expostas logo na entrada eram triviais – ferragens de banheiro, ferramentas e peças de carro e moto. Andando mais para o fundo, porém, começavam a aparecer celulares com as telas riscadas, computadores portáteis com as laterais rachadas e videogames de última geração cobertos de poeira. Os vendedores – homens e mulheres – eram todos muito feios e mal encarados, mas nada bateu a visão que encontrei ao fundo do pátio.
“Uniformes de infantaria, de marinheiros e de oficiais estavam todos em cabides velhos em uma parede, e perguntei ao careca de luvas de couro sobre o capote que hoje está nas minhas costas. Ele disse que não poderia fazer por menos de dez lats, algo próximo de R$ 45 na época. Uma pechincha.”
As relíquias de guerra ficavam juntas a uma parede, em duas barraquinhas contíguas. A mais vistosa era administrada por um sujeito que parecia ter saído direto de um filme: alto, forte, careca, com camisa pólo preta de mangas curtas, calça jeans e botas elegantes, luvas de couro pretas, arremessando uma faca pontuda em uma tábua na parede, ao lado de onde ficavam expostos os uniformes militares. Ele parecia estar discutindo com um amigo, um sujeito feio e gordo como os outros, algo sobre a faca que estava sendo arremessada, porque a cada arremesso fazia uma constatação. A propósito: a faca nunca cravava na tábua. Ela quicava na parede em um ângulo estranho e voava longe – algumas vezes nas barracas de outras pessoas. E ninguém reclamava.
Uniformes de infantaria, de marinheiros e de oficiais estavam todos em cabides velhos em uma parede, e perguntei ao careca de luvas de couro sobre o capote que hoje está nas minhas costas. Ele disse que não poderia fazer por menos de dez lats, algo próximo de R$ 45 na época. Uma pechincha. Pedi para experimentar e ele tirou o casaco da parede, discretamente sacudindo e pisando em uma aranha amarela gigantesca que estava descansando na parte de trás da vestimenta. Assim que vesti o casaco, senti seu peso e senti suas mangas molhadas. Num misto de inglês ruim, russo ininteligível e mímica, ele me explicou que as peças de roupa tomaram muita chuva no dia anterior.
Pensei um pouco sobre o assunto e enquanto isso, dei mais uma olhada no expositor do quiosque improvisado. Medalhas, armas e equipamentos como capacetes e óculos estavam disponíveis para colecionadores e curiosos sem impeditivos capitalistas morais como eu. Perguntei sobre um vistoso punhal da SS que estava num estande, mas ele, num gesto de honestidade raro entre os russos da Letônia, me disse que aquilo era uma réplica, mas que havia um punhal de cerimônia original que custava a bagatela de 80 lats. Ele colocou o punhal na cintura e imitou um nazista desfilando com ele. Foi uma imagem bem convincente.
Decidi por fim levar o casaco. Paguei os dez lats e recebi a peça enrolada em um saco gigantesco de plástico rústico e quebradiço. Antes de ir embora, ele me disse alguma coisa que não entendi. Marko traduziu pra mim: “Deixe para usar isso apenas no seu país”.