O Bósforo é mar com sonhos de rio. Tem em sua menor largura apenas meio quilômetro e, mesmo onde suas margens opostas mais se distanciam, não faz frente a um Amazonas. Corta a cidade de Istambul, passando como passaria um escorredouro de águas, de uma nascente longínqua a uma foz reconciliadora com a fonte de todas as fontes, mas não: o Bósforo é a imensidão unida à imensidão, a cúria indomável com desejos de ser contida, de espiar a vida em cabresto. O Bósforo é a liberdade capturada em moldura.
É um tanto difícil aceitar tudo o que a geografia bizantina desafia à comprovação ocular dos fatos – das montanhas arenosas esculpidas da Capadócia às piscinas calcárias de Pamukkale – mas o Bósforo permanece como um monolito misterioso e tão cheio de poder que é capaz de separar não apenas mares, mas culturas e continentes inteiros, tão heterogêneos e longínquos quanto a imaginação é capaz de compreender. Nem Magalhães, Querche, Gilbraltar e Bering, nem mesmo o canal da Mancha ou o impressionante Dardanelos – junto com o Bósforo, o outro escape do mar de Mármara, com saída para o Egeu – é capaz de invocar tamanho poder simbólico.
De um lado de suas margens, toda a cultura ocidental, a cristianização perene, os valores exacerbadamente humanistas, a democracia que atropela a si própria e o ceticismo devoto, signos sob os quais nos explodimos em guerras de cifras. Do outro, o oriente, a suspensão de toda a descrença, a reconexão com as forças da natureza, os dogmas que trotam por cima de vidas humanas e o berço civilizatório em todo seu esplendor conservado.
Separados por um mar que corta uma cidade, ela mesma o centro do mundo, palco de guerras e mais guerras travadas em nome de seu domínio. A rota marítima capaz de provocar uma sucessão sem fim de estadistas visionários, truculentos, zelosos e sonhadores, jamais titubeantes quanto à importância desse estreito. O Bósforo é mar dominado pelas margens. Dominar as margens do Bósforo é dominar tudo o que há para ser dominado.
O Bósforo é mar com sonhos de rio. Tem em sua menor largura apenas meio quilômetro e, mesmo onde suas margens opostas mais se distanciam, não faz frente a um Amazonas.
E ainda assim, lá está ele, às vistas dos Istambullus, que há muito já o tem como fato consumado e irremovível. Seja um europeu de Sultanahmed ou um asiático de Üsküdar, um ocidental torcedor do Galatasaray ou um oriental fã do Fenerbahçe, todos olham o Bósforo apenas como um demarcador geográfico para a cidade em si e um empecilho a ser evitado na locomoção urbana. “A ponte engarrafou” ou “perdi a balsa de novo” escondem em seu manto de banalidade a natureza fascinante que delimita a extensão dos povos. Vizinhos de margens, se acenam, se espiam, se amam e cumprimentam, atravessam um mar para visitar amigos e parentes, passam por cima, ao largo e até por baixo, em vias subterrâneas de metrô. O mar, que sempre foi motivo para medos infinitos, canções, poemas, guerras e morte, em Istambul é apenas um rio caudaloso que não sabe ser outra coisa a não ser cidade.