Dia desses, um amigo estava se queixando para mim sobre os haters no grupo do Facebook dedicado à restauração de bicicletas Caloi 10 da década de 1970. Dizia ele que existem muitos, naquele grupo, que se preocupam mais em menosprezar o trabalho alheio do que propriamente se dedicar a entender do assunto. O assunto, no caso, é a restauração de bicicletas Caloi 10 da década de 1970.
É um grupo formado por pessoas apaixonadas por esse modelo específico de bicicleta e tudo aquilo que sua restauração compreende. Decalques, quadros, bancos, selins, aros, freios e as diversas e especializadas ferramentas necessárias para o trabalho. Existem, como circundantes do grupo, coadjuvantes mais ou menos importantes para os restauradores. De um lado, os tais haters, assim como os reformadores competitivos, aqueles que desejam reivindicar para si o monopólio da restauração das bicicletas Caloi 10 da década de 1970. Do outro, entusiastas, vendedores de peças, artistas da confecção de peças e decalques há muito fora de circulação e, claro, compradores.
Vivemos para construir microcosmos, campos de guerra do tamanho de nosso poderio bélico individual. Não podemos nos saltar de arquibancada em arquibancada defendendo nossa posição e nossas bandeiras, mas podemos tirar o sono de outro apaixonado das minúcias como nós.
Os restauradores de bicicletas Caloi 10 da década de 1970 têm razões para eleger essa bicicleta entre tantas outras como depositório de suas obsessões, mas essas razões aparentemente são diferentes. Enquanto alguns são apenas nostálgicos, outros tratam de pinçar a Caloi 10 da década de 70 como um marco tecnológico e estético das bicicletas sprint, algo que viria a traçar novos paradigmas para bibicletas comercializáveis no Brasil de então. Também porque não se fazem mais Calois como a Caloi 10 da década de 70. Sua leveza, seu design arrojado e os materiais usados ficaram pelo caminho da acumulação flexível do nosso capitalismo tardio (Parece haver algo na década de 70 que entusiasma outros nostálgicos. Talvez tenha sido a última década de inovação com uso de boa matéria-prima, para a derrocada de obsolescência e vida útil programadas).
Bom, não pretendo, com esse texto, fingir que sei alguma coisa sobre restauro de bicicletas ou os caminhos do coração. O que sei é o que vocês também já sabem ou já perceberam a partir da leitura do primeiro parágrafo desse texto. Vivemos para construir microcosmos, campos de guerra do tamanho de nosso poderio bélico individual. Não podemos nos saltar de arquibancada em arquibancada defendendo nossa posição e nossas bandeiras, mas podemos tirar o sono de outro apaixonado das minúcias como nós.
Produtores de vinho da serra gaúcha tentam minar o campo alheio enquanto o governo assina tratados pela redução de impostos sobre vinhos importados; escritores trocam farpas e indiretas enquanto um filme de super herói ocupa duas mil e quinhentas das três mil salas de cinema do país. Restauradores de bicicletas Caloi 10 discutem sobre a posição do decalque enquanto o prefeito acaba com as vias lentas da cidade. Precisamos com todas as forças do nosso mini-coliseu. Sem eles, somos muito pouco.
É pequeno e mesquinho, algum desavisado sobre o tamanho da alma humana poderia objetar. Sobre isso, nada se pode fazer a não ser abrir a porteira do mundo para o objetor e, com um tapinha na bunda, dizer-lhe: vai, abraça o mundo todo de uma vez só. Continuemos cá, diminutos centuriões nas batalhas que nos cabem, porque para mais já não temos força. Matemos um leão por dia. Um leãozinho, vá.