Falei, outro dia, numa crônica, sobre o tempo biológico da panificação. Um tempo lento e que não está sob o jugo da lógica dos recursos consumíveis da cozinha. Mas a verdade é que este é apenas um dos tempos – um excêntrico, diria – da cozinha, esse laboratório de transformações físico-químicas que usamos com mais ou menos gosto.
É verdade que o ser humano há de ser o único animal capaz de transformar subsistência em arte. A combinação de sabores, a estrutura de temperos e texturas, o ponto de cocção de cada ingrediente, tudo está maquinado na mente. As mãos trabalham com a faca e a tábua, ou com a colher de pau e a panela, ou ainda com o cabo da frigideira a simular mergulhos e arrebatadas que misturam tudo o que há em sua superfície, e ainda assim, quem opera é o cérebro. O tempo se conta de cabeça ou no relógio, o nariz identifica os ésteres e fenóis que viajam no ar com as partículas de gordura ou vapor d’água, os ouvidos escutam os crepitares que anunciam a iminente queima ou o silêncio com que as cocções terminam, os olhos testemunham a reação de maillard separar o que é miolo e o que é crosta, criar arestas e definir crocâncias. Todos os sentidos estão a serviço de si próprios no momento da cozinha, e a performance é sempre de resultado.
É verdade que o ser humano há de ser o único animal capaz de transformar subsistência em arte. A combinação de sabores, a estrutura de temperos e texturas, o ponto de cocção de cada ingrediente, tudo está maquinado na mente.
Para além do tempo químico, do tempo físico e do tempo biológico, há um outro tempo, mais subjetivo e que define a personalidade do que se come: o tempo que se passa na cozinha. Percebido de maneiras diferentes, de acordo com o gosto pelo exercício, que pode ser considerado essencial ou meramente fútil. Por isso cozinhar é também um evento que merece reunir os amigos. Mais mãos ajudam no preparo, todos bebem durante o processo e depois se banqueteiam a recompensar o trabalho. E quem não gosta de cozinhar pode só ficar olhando, alheio à diversão que tanto esforço pode guardar.
Uma refeição bem-feita demora, no máximo, uns quarenta minutos para ser consumida — o que pode corresponder a uma fração microscópica do tempo que se levou para prepara-la. Pela lógica, a conta não fecha, mas a lógica não tem nada que ver nesses assuntos. O tempo da cozinha é o tempo do coração.