Visitei a casa da minha mãe essa semana, a mesma casa onde morei durante o ensino médio, ou seja, por três anos, dos meus 14 aos 17. Enquanto estava me instalando, a pesada mala aberta para alcançar de pronto a bolsa de banheiro, o desespero por um banho relaxante após uma viagem pelo interior do Estado do Rio de Janeiro, ela perguntou se eu precisava de alguma coisa. Eu precisava comprar um chinelo de dedo alguma hora, disse, ciente de que não havia trazido nenhum. Foi então que ela tirou um antigo chinelo meu do armário e me entregou.
O choque que esse chinelo me causou foi maior do que esperava. Calcei-o depois de 15 anos e parece que nada havia mudado nesse meio tempo. Resistente e sólido, da marca Raider, o chinelo calçou bem meus pés enormes. O que me chocou mais foi o fato de que eu o usei por longos cinco anos ou mais e sequer me lembrava de sua existência. Até revê-lo, não tinha qualquer lembrança dele, era como se houvesse deixado de existir e toda minha memória sobre ele houvesse sido apagada. Tenho boas lembranças das roupas e calçados que tive, é bom mencionar. Lembro com carinho de quase todas as camisetas e jaquetas que tive, calças e tênis. Mas não tinha nenhuma lembrança de que um dia tive esse chinelo. Não foi por falta de uso: sendo a cidade um lugar quente e informal, usei-o ostensivamente por boa parte da minha vida por aqui. Pra piorar, sou um pouco apegado com calçados. Apegado e ciumento. Gosto de todos eles e mantenho um carinho por todos que já tive.
O choque que esse chinelo me causou foi maior do que esperava. Calcei-o depois de 15 anos e parece que nada havia mudado nesse meio tempo. Resistente e sólido, da marca Raider, o chinelo calçou bem meus pés enormes. O que me chocou mais foi o fato de que eu o usei por longos cinco anos ou mais e sequer me lembrava de sua existência.
A ausência desse chinelo nas gavetas da memória acendeu em mim o alerta para a efemeridade do nosso mais extenso registro de existência enquanto representação subjetiva. Não à toa, a memória está, na literatura e em outras artes, atrelada à invenção, como dois lados da mesma moeda, derivados da mesma matéria-prima. Se não tenho lembrança de um chinelo que, agora sei, costumava amar e usar bastante, que possibilidade tenho de lembrar o mal que causei aos outros, os traumas que imprimi ou que transferi por anos a fio, a impressão que outros que me conheceram fizeram de mim a partir de algumas percepções. Dou-me conta de que lembro pouco de como eu era, e que costumo guardar a história de livros, filmes e letras de música, mas não a minha própria.
Os chinelos me lembram de que deixei para trás muito mais do que acreditava ter deixado. Que, na ausência de uma mãe que me guarde os chinelos de dedo, tais abandonos involutários estão irremediavelmente perdidos. E que nesse exato momento, enquanto escrevo, despejo sem defesa mais um caminhão de rejeitos no aterro sanitário da memória. O homem que vive sozinho tem apenas a si mesmo para contar quem é. Anda pelo mundo a inventar sua própria memória de forma seletiva, sem rede de proteção. Acreditará nas próprias histórias com o tempo e forjará sua biografia de material poroso, não durável. Que risco corremos ao aceitar as mentiras que construímos para completar as lacunas de uma verdade que se vai como os chinelos que arrebentam, as calças que rasgam e os televisores que queimam. Podemos lembrar muito, mas dependemos dos outros para que lembre algo por nós. Caso contrário, sairemos para comprar chinelos, tendo um esquecido e amado par no armário à espera de décadas.