Pense nos cães. A versão doméstica de um animal selvagem, que foi domada pelo homem em tempos imemoriais – provavelmente para fins de vigilância ou devido a suas habilidades com caça – é completamente passiva, entregue aos desejos de seus mestres. Todos os outros animais carnívoros estão ameaçados de extinção, enquanto os cães movimentam uma indústria milionária de alimentos e assessórios que afronta a miséria humana de forma obscena. Vai saber quais instintos primitivos o Homo sapiens não está resolvendo ao ter um cão em casa. Pode ser o triunfo sobre a natureza, manter um animal de presas afiadas como seu aliado pode fazer bem, assim como também deve fazer bem ter em casa uma bolinha de pelos subserviente que recebe e retribui todo o amor que se tem desejo de transmitir. Vai saber.
Pense agora na evolução, a teoria bem estabelecida de que animais são selecionados pelo meio por sua capacidade de adaptação, inata ou desenvolvida. Entre os cães, como animais domesticados, sobrevive aquele que melhor atende ao que o homem espera dele. Entre o que caça gatos mas tem medo de gansos e o que mata gansos e gatos, fica-se com o último. Entre o que tem pelo feio e o que é peludinho e vistoso, fica-se com o último. Entre o que tem cara de bobinho e o que tem cara de bobalhão, fica-se com o último. Entre o hostil e o manso, fica-se com o último.
Estes são os cães que restam. Mas e o que resta dos cães? Não têm liberdade para comer o que querem, andar por onde querem, não escolhem seus parceiros sexuais e os que não têm dono são perseguidos, capturados e sacrificados, a menos que arrumem um em um determinado prazo. Entretanto nos amam. Choram ao menor sinal de nossa ausência e mal se aguentam de felicidade quando nos reencontram. Nós, que somos os carcereiros de suas gaiolas douradas. Então a autonomia e a liberdade nunca importaram para um gênero com espécies que dominaram estepes vastas e sobreviveram a predadores maiores do que eles?
Estes são os cães que restam. Mas e o que resta dos cães?
É difícil lembrar, mas quando se está a tanto tempo acostumado com a passividade da espécie, parece que aspectos como estes nunca foram uma questão. Continuam a sobreviver, sim, mas a que preço? A que renúncias? Toda a alegria, o companheirismo e a tristeza, tenho certeza, não são fingidas. Gostam da vida que levam, vivem bem confortáveis e são cegamente fiéis a seus donos. É o melhor amigo do homem, e dizem até que, depois de um certo tempo, começam a se parecer fisicamente com eles.
Enquanto isso, os lobos continuam vagando pelas florestas. Livres, ameaçados, morrendo aos poucos, sozinhos ou em bandos. Sem amo, sem servo, sem espaço para cadeia de comando na alcateia para além da hierarquia natural de um animal coletivo. Há quem prefira lobos. Mas a grande maioria, essa prefere cães. Eles também amam, eles também são amados, eles também obedecem, eles são muito como nós.