O terceiro cachorro era um filhote muito bonito. Sem qualquer competição à altura, o mais ágil e o mais precoce da ninhada. Sem Nome — vamos chamá-lo assim porque, afinal, é preciso chamá-lo de alguma coisa — não era exatamente um cachorro de rua, mas sim um cachorro de fazenda. Na prática, a diferença era muito pouca, pois sua família inteira dormia ao léu e estava igualmente sujeita aos perigos da noite e do dia. A obrigação do capataz da chácara com a família de Sem Nome era igualmente muito pouca: basicamente, ele gerenciava uma comida que tratava de colocar em um espaço longe dos outros animais da fazenda, mais por simpatia do que por uma obrigação moral, e decidir quantas bocas a mais são demasiadas para desequilibrar a economia da fazenda que, era preciso que se dissesse, não ia nada mal para ser abalada com tal gesto de bondade.
Então foi assim. A mãe de Sem Nome teve quatro filhotes na mesma ninhada, e o capataz não queria alimentar mais cães do que aqueles que já moravam por ali por uma crença de que uns chamariam outros e em breve uma cachorrada estaria nos arredores da fazenda como uma praga de lavoura. Os homens do campo como ele, de maneira geral, são muito ciosos quanto a alimentar animais que não inspiram interesse econômico para o lugar, muito menos esses criados sem qualquer controle ou cercadinho. De modo que esperou os filhotes desmamarem, para não traumatizar a mãe, e lá pelo meio do segundo mês de vida, os levou para o córrego para se desfazer deles. Como eram quatro, o velho trouxe a criança para ajudá-lo a carregar. A criança era esperta, mas por ali a visão de longo alcance era rara, e ela não sabia precisar os planos do capataz. Também não fez perguntas, apenas segurou Sem Nome e outro filhote nas duas mãos e saiu atrás do adulto, pisando alto de galochas de borracha pelo matagal próximo ao córrego que passava ao largo da propriedade e que divisava a fazenda ao lado. A mãe de Sem Nome não fez objeção à remoção de todos os filhotes de uma vez do pequeno canto onde os criava.
O menino estava distraído olhando os cachorrinhos em suas mãos e só se deu conta de que estava ali se livrando deles quando o segundo cão emitiu um ganido fino e sofrido quando foi arremessado na pedra.
Quando chegaram à beira do riacho pedregoso, o capataz arremessou um e depois o outro cãozinho que estavam em cada uma de suas mãos. Poderia ter atirado os dois ao mesmo tempo, mas isso seria sádico a seus olhos. Por isso fez uma certa cerimônia para que o Criador distinguisse os momentos de cada morte. O primeiro conseguiu botar a cabeça para fora da água de alguma maneira e viu-se apenas a cabecinha minúscula e alheia ao que estava acontecendo rodando silenciosamente sobre a superfície antes de desaparecer por trás de algumas pedras que eram grandes o bastante apenas para esconder um corpo tão pequeno. O segundo bateu rapidamente em uma pedra e afundou a cabeça já inconsciente enquanto seguia o curso do riacho.
O menino estava distraído olhando os cachorrinhos em suas mãos e só se deu conta de que estava ali se livrando deles quando o segundo cão emitiu um ganido fino e sofrido quando foi arremessado na pedra. Antes que pudesse se dar conta, porém, de que aqueles que seguravam seriam os próximos a morrer, o capataz já havia tomado um deles de suas mãos e rapidamente repetiu a ação derradeira. Foi aí que olhou assustado para Sem Nome, o último sobrevivente, e percebeu como nunca havia reparado em sua beleza. Tinha manchas marrons pelo corpo branco e era consideravelmente mais peludo do que os outros, até mesmo para um filhote. Com as manchas no rosto, deixava apenas um filete de pelos brancos descer pelo meio da testa até desaparecer no focinho, a caminho de seu nariz.
Tinha patinhas brancas e uma cauda longa e marrom, também com a ponta branca. Mas o mais bonito, na avaliação da criança, eram seus olhos. Ela não sabia que os cães pequenos têm olhos mais claros que vão escurecendo conforme se desenvolvem, e achou que aquele filhote era especial por apresentar olhos de um azul límpido em meio à pelagem branca e marrom. Enquanto Sem Nome se inquietava em seu colo, julgou perceber naqueles olhos um pedido de socorro, e foi aí que o capataz se virou e lhe pediu: “me dá o outro”.
A criança olhou para Sem Nome e fez menção de protegê-lo, e o capataz repetiu a ordem, agora mais incisivo. A criança disse um “não”, baixo e tímido, já dificultado pelas lágrimas que começavam a brotar em seus olhos. Era a primeira vez que desafiava a autoridade adulta daquela maneira, e não se sentia muito mais forte do que aquele festeiro que acabara de fazer. O capataz, impaciente, tomou Sem Nome das mãos da criança, e antes que ela pudesse tentar qualquer tipo de barganha, arremessou-o ao riacho.
A criança entrou em desespero. Gritou um “não!” muito mais alto enquanto Sem Nome estava no ar, entre seus últimos momentos de vida, e desatou a chorar um choro berrado, em que gritava inconsolável: “que peninha! Que peninha!” em meio aos soluços. O capataz apenas disse: “pronto, já foi, vambora, anda”, empurrando a criança na direção contrária do caminho pelo qual vieram. Ela começou a andar, mas não parou de chorar e, enquanto voltavam pelo caminho de mato alto, agora sem os cachorros, soluçava baixinho: “que peninha! Que peninha!”.