Mochila, chaves, celular, carteira, máscara. Natural como sempre estivesse ali, ao alcance da mão na hora de sair de casa. Não embaçam os óculos de grau, mas os óculos escuros, sim. Pra piorar, dificultam a aderência das hastes nas orelhas. Os óculos caem no chão se olho para baixo vestindo a máscara. Como só uso óculos escuros fora de casa, não olho mais para baixo fora de casa. Acostumei a olhar para a frente, acostumei a olhar a todos de máscara nas ruas, nos mercados e farmácias. Não consigo lembrar de uma época em que as pessoas não usavam máscara na rua. Quando vejo o rosto completo de alguém, estranho. Depois sinto uma raiva pequena. Sinto que quem não usa máscara na rua quer chamar a atenção, mostrar que é diferente, superior, imortal.
Esqueço que estou de máscara quando chego em casa. Começo a preparar o jantar e lá pelas tantas lembro da máscara no rosto. Tiro, com uma vergonha que não tem direção. Não há ninguém por perto para me ver desnecessariamente de máscara no rosto em casa. Esqueço que estou de máscara quando coloco o capacete e vejo tudo – óculos e viseira – embaçar. Esqueço que estou de máscara quando vou tomar uma água no trabalho, quando escovo os dentes depois do almoço, quando sorrio pra alguém na rua. Aí lembro, e torço para que meus olhos tenham feito o trabalho que meus lábios esticados por baixo de um pano escuro desempenham inutilmente.
Quando vejo o rosto completo de alguém, estranho. Depois sinto uma raiva pequena. Sinto que quem não usa máscara na rua quer chamar a atenção, mostrar que é diferente, superior, imortal.
Percebo que, lentamente, começo a achar o rosto humano uma aberração, uma indecência. Algo que deve permanecer no cinema e na televisão, como tiros e explosões. Ou como algo muito íntimo, reservado para amigos próximos, familiares e amores. A máscara é a nova camiseta, usada no calor por convenção e decência, o respeito com o próximo. Sem ela, somos mais selvagens, menos sensíveis, menos humanos. Diferenciamos nas ruas o neandertal auto-intitulado do zoon politikon, aquele que entende a teia inextrincável em que vivemos.
Sempre vi os japoneses usando máscaras em imagens das ruas de Tóquio. Achei, no começo, se tratar de um sistema imunológico fragilizado, mas alguém acabou me explicando que os japoneses usavam máscaras quando estavam doentes, para não espalhar a doença para os outros. Percebi então que já não vejo alguém gripado na minha frente há um bom tempo, e a brutalidade que consiste a gripe explícita, o nariz escorrendo e a tosse sendo abafada apenas com o punho fechado diante da boca. Talvez esse seja um costume considerado altamente anti-higiênico no futuro, como foi despejar baldes de merda pela janela na idade média.
Vejo também a aderência às máscaras como uma nova forma de expressar a personalidade. Máscaras de times de futebol, com temática geek, padrões militares ou estampas vívidas botam a população à procura de fazer uma moda em meio à pandemia. Já não imagino uma sociedade sem máscaras. Uns reclamam sobre a dificuldade na hora de fazer exercícios, outros sobre os óculos que embaçam, a barba que amassa, as orelhas que machucam. Mas vejo o mar de máscaras nas ruas e constato: a tudo se adapta em nome da vida que segue.