Vicente era rico.
Talvez seja um começo inadequado. Vicente é rico. Sempre foi e, sempre será, rico. Materialmente rico. Com dinheiro o suficiente para nunca precisar se preocupar com dinheiro. Nem os filhos, nem os netos de Vicente precisarão se preocupar com dinheiro. Talvez seus bisnetos, sei lá eu. O que quis dizer quando disse que Vicente era rico é que Vicente era rico quando eu o conheci, e isso faz quase trinta anos. Ele era uma criança muito rica. Sua família é dona de um resort de luxo e, na falta de escolas melhores para ele na região, acabamos estudando juntos por algum período no começo da década de 90.
Vicente e eu ficamos amigos, fomos amigos por um tempo. Perdemos contato depois. Algumas vezes ele frequentou minha casa. Nada me lembro sobre essas ocasiões. Mas lembro nitidamente de todas as vezes em que visitei a casa dele. Do começo ao fim. Lembro de seu motorista vindo me buscar para passarmos uma tarde juntos. Lembro do condomínio de luxo em que morava, e lembro de sua casa com um andar de cima, onde ficava seu quarto. Lembro de seu Gameboy, de sua piscina de pedras, da bicicleta que me emprestou para pedalarmos próximo ao campo de golfe. Lembro de várias outras bugigangas que Vicente tinha.
Mas lembro, principalmente, de como ele era um bom amigo. É estranho, crianças não costumam ser boas amigas. São só seres humanos que brincam juntos e a boa amizade se faz pela afinidade e pela pouca mesquinhez com as próprias possessões. Isso Vicente tinha, mas havia algo mais. Vicente era bom amigo porque sabia ser uma boa pessoa já naquela idade. Ele era inacreditavelmente hospitaleiro para uma criança de, o quê, seis, sete anos? Mostrava a casa não com soberba, mas com gentileza, para que ficasse confortável em minha visita. Emprestava suas coisas não para ter alguém com quem brincar, mas porque sabia que aquela era minha única oportunidade de chegar perto de coisas como as que ele tinha.
É estranho, crianças não costumam ser boas amigas. São só seres humanos que brincam juntos e a boa amizade se faz pela afinidade e pela pouca mesquinhez com as próprias possessões.
Não me leve a mal, eu não era pobre. Tinha muitos brinquedos bonitos, alguns caros, mas nada comparado a seu próprio espólio. Vicente era bom amigo porque conseguia ter esse tipo de noção mesmo cercado por gente rica desde que abriu os olhos pela primeira vez. Raramente escolhia as brincadeiras, preferia perguntar o que eu gostaria de fazer para começarmos nossas tardes juntos. Nesses pequenos gestos, passava uma lição horizontal. Jamais concebi poder aprender nada com outras crianças, mas aos poucos fui entendendo o que ele estava fazendo e que isso eu poderia aprender. Gentileza, cordialidade, hospitalidade. Falava de seu inimigo no condomínio de luxo, outro garoto milionário com quem rivalizava por qualquer besteira, e encontrava pequenos atos de sabotagem do menino em sua propriedade. Eu não conseguia conceber como um menino poderia vandalizar alguma coisa e, ainda por cima, inimizar-se com o que era, a meus olhos, um rapaz supimpa. Volta e meia pensava nisso, anos depois de perdermos o contato. No menino que nunca conheci, e de cuja existência só tive conhecimento porque testemunhei suas pequenas destruições.
Vicente e eu tivemos muitas tardes agradáveis quando eu era criança, e mesmo depois, quando ficamos mais velhos e ele começou a trazer seus amigos ricos para surfar na nossa praia – um deles viria a ser o astro adolescente Felipe Dylon – lembro dele como um cara bacana, rodeado de amigos, gente boa com todo mundo. Entre meus amigos, nunca percebi o dinheiro de Vicente interferindo em alguma coisa na nossa relação com ele. Mas a minha mais duradoura lembrança sobre esse meu amigo vem de um episódio que deveria ser fugidio.
Meus pais estavam se divorciando. Tentando reatar, talvez. Fomos juntos até o condomínio de Vicente. Eu estava vivendo sensações novas, havia sofrido algum estresse no meio do processo e psicólogos ainda diagnosticariam essa fase como a causadora da tristeza que viria a me acompanhar por toda vida. No meio disso tudo, estávamos lá, eu, meu pai, minha mãe e Vicente, arrumado e elegante, caminhando conosco pela marina de seu condomínio em uma noite quente. Lembro de me sentir perdido em meio aos sentimentos dúbios que meus pais sentiam um pelo outro e de não entender exatamente a graça de uma caminhada noturna por uma marina quando a poucos metros dali estava a casa de Vicente com seus brinquedos inacreditáveis.
Mas Vicente entendia. Ele conversava com meus pais como um adulto. Era cortês, silencioso, obsequioso não como são as crianças diante de adultos estranhos, mas sim como são as pessoas diante de convidados. Não se sentia intimidado de estar ali, e tudo o que eu conseguia pensar era que eu jamais teria essa desenvoltura. Sabia conversar sobre qualquer coisa, era a impressão que eu tinha. Em algum momento dessa caminhada, subiu e sambou sobre um pequeno barquinho que estava acorrentado, e naquele momento de ousadia retomei a consciência de que era uma criança como eu, um ou dois anos mais velho talvez, mas nada que devesse lhe conferir a maturidade que me mortificava de admiração.
A maturidade de Vicente naquele dia inspirou alguma tentativa de maturidade de minha parte durante o divórcio dos meus pais. Demorei muito a ser uma pessoa madura, e talvez tenha me ressentido dessa incapacidade. No fim das contas, Vicente e eu fomos amigos por pouquíssimo tempo, e depois desse período, só o vi de longe, uma ou duas vezes no máximo. Volta e meia algum amigo de infância dizia que o encontrara. Continuava gente boníssima. Ouvi dizer que, na adolescência, namorou a Maya Gabeira e que ela começou a surfar com ele. Não sei se é verdade, mas não me admiraria de saber que Vicente haveria de ser essa força inspiradora vida afora. Vicente era rico. Vicente sempre vai ser rico. Mas tratar Vicente como uma pessoa rica parece uma ignomiosa tentativa de desumanizá-lo. Ele nunca pareceu querer ser definido por seus bens, por mais que isso fosse, à primeira vista, a coisa mais maravilhosa sobre ele. Mas havia algo a mais. Vicente era ser humano antes de mim.