Nove e meia da manhã. Ele sobe no mesmo ônibus que eu, mas não faz nada até que ele comece a andar. Prefere ficar de pé e tem uma caixa de papelão nas mãos. Estranho. Assim que as portas se fecham e o falcão prateado faz a primeira curva, começa.
— Senhoras e senhores passageiros, bom dia! – grita, revelando um hálito fétido e uma escolha de vida duvidosa, e espera a resposta que ninguém se propõe a dar. Repete. Uma menina acuada no fundo murmura um bom dia de volta e ele treplica com mais um bom dia, ainda mais alto do que o primeiro, tentando passar algum tipo de lição de moral que não consigo captar. Segue, junto com o ônibus.
— Hoje eu não vim vender nada! Faço parte da Casa xxxx, uma comunidade terapêutica para dependentes químicos, e faço esse trabalho há três meses. Senhores, Jesus está nas nossas vidas e a gente não se dá conta disso. Tem que deixar ele trabalhar em você. Quantas vezes, em São Paulo, eu peguei o trem logo cedo pela manhã e perguntava pra Jesus “Por que você não trabalha em mim, Senhor?” e Jesus respondeu: “Você não está fazendo a minha vontade, como você quer que eu faça a sua?”. Hoje eu estou aqui fazendo a vontade de Deus e ajudando outros que precisam da ajuda da nossa comunidade, assim como eu precisei. Graças a Deus, larguei a vida mundana, a cocaína e o álcool, e estou reestabelecido. Estarei passando para os senhores um kit infantil que tem um balãozinho e uma palavra para ajudar a gente. A gente não vende esse kit, mas pede só a sua contribuição mínima de três reais. Esse balão, tem de menino e de menina, custa dez reais na loja. Ok, senhores? Pra terminar, vou mandar um salmo pra vocês, ok? É o salmo vinte e três. O Senhor é meu pastor e nada me faltará, valeu? Vou passar pegando o dinheiro agora.
Graças a Deus, larguei a vida mundana, a cocaína e o álcool, e estou reestabelecido. Estarei passando para os senhores um kit infantil que tem um balãozinho e uma palavra para ajudar a gente.
— Eu também fui da Casa, senhor. — grita lá da frente um menino que estava sentado com a mochila no colo.
— E aí, irmão, como é que tá? Tá salvado?
— Salvado ainda não.
— Mas tá limpo então.
— Ah, tentando, né?
— Na fé, irmão. Se apega na palavra, valeu?
— Valeu.
— Eu tenho uma palavra aqui. — Diz, timidamente, uma mocinha que estava com uma bíblia na mão. Os olhos dele brilham, e ele vai de encontro como quem encontra ouro em meio à Serra Pelada.
— Abre aí, irmã, quero ver.
Eles cochicham alguma coisa e de repente ele, muito espantado, grita.
— Ô glória, irmã, essa foi forte, hein? Fiquei arrepiado aqui. Senhores, olha só a palavra que a irmã… Como é seu nome? (Larissa) Que a irmã Larissa mandou aqui pra mim. Eu estou indo pra São Paulo hoje a noite para continuar o meu trabalho, estava meio receoso de ir, sabe o que diz ali na palavra da irmã? “Vinde, pois está tudo arranjado”. Eu estou indo pra São Paulo porque é a vontade de Deus, e ele já deixou tudo arranjado pra mim! — palmas acanhadas vêm de lugares distintos do ônibus enquanto ele abre triunfalmente os braços e um sorriso malicioso.
Parece que aquilo tudo faz sentido para os presentes no ônibus. Parece que eu não tenho lugar.