Você já refletiu sobre o que são bibliotecas? Pensou sobre sua importância, o papel que elas exercem, qual foi a última vez que você frequentou alguma, com que propósito e quantas pessoas estavam ali? Algumas dessas reflexões podem chegar, de maneira errônea, na conclusão de que a biblioteca é um espaço utilizado para guardar livros e que, aos poucos, é uma estrutura que se torna obsoleta.
Na verdade, bibliotecas são construções sociopolíticas que revelam a maneira com que determinadas culturas enxergam e se relacionam com o saber. Em um documentário sobre a Biblioteca Pública de Nova York (NYPL), a arquiteta Francine Houben diz algo como “pensar sobre bibliotecas não é pensar sobre armazenar livros, mas sobre pessoas. Pessoas que querem adquirir conhecimento, e isso pode ser feito por livros, mas também de diversas outras formas”.
O documentário em questão é Ex Libris: Biblioteca pública de Nova York, lançado em 2017. Dirigido por Frederick Wiseman, o filme tem pouco mais de 3 horas de duração. Ao longo de sua carreira, Wiseman filmou diversas instituições estadunidenses, como fez com a National Gallery.
Em Ex Libris, Frederick retratou a NYPL e suas diversas filiais da mesma maneira que seus outros documentários. Gravou palestras, encontros, clubes de livro, aulas de braile, reuniões de planejamento e diversos outros serviços como um observador. A organização desses retalhos no corte final resultou no entendimento da biblioteca como uma instituição democrática.
Em uma entrevista sobre o documentário, o diretor explicou sua visão. Com pouco contato com bibliotecas públicas, acabou descobrindo seu funcionamento enquanto gravava. A descoberta do funcionamento de um espaço aberto e acessível para todos, não só na teoria, mas na prática, e com a variedade de coisas que oferecia, fez com que ele visse ali algo que era intrinsecamente democrático.
Essa percepção é notada ao longo do filme. Com um estilo muito próximo a do Cinema Observacional, o documentário pode se tornar um cansativo para assistir em uma única tacada. Ao longo dos 197 minutos, não há nenhuma espécie de narração ou entrevistas que conduza o documentário. Ele é formado pela reprodução das atividades gravadas na biblioteca, com algumas das cenas bastante contemplativas e outras se tornando situações estendidas.
Dentre os eventos gravados, as reuniões de planejamento são constantes ao longo do filme. Nelas, discute-se a importância da filantropia privada no orçamento, como as parcerias público-privadas devem funcionar, a necessidade de digitalização do acervo, a preocupação em disponibilizar acesso à internet, como buscar e entender as necessidades da comunidade em que a filial está e etc.
Algo interessante de se notar é a presença de várias estruturas que atendem demandas diferentes. Existem espaços para artes, como teatro, dança, música e galerias de arte. Um acervo de jornais e revista. A “Picture Collection”, que é um acervo físico de imagens que funciona desde 1915, com ilustrações originais de diversas décadas e que está aberto para consumo – sendo fonte de matéria-prima inclusive para artistas, como Andy Warhol. Até mesmo o processo de pensar a organização e exposição dos livros é apresentado.
A descoberta do funcionamento de um espaço aberto e acessível para todos, não só na teoria, mas na prática, e com a variedade de coisas que oferecia, fez com que ele visse ali algo que era intrinsecamente democrático.
As demandas não diferem apenas nos espaços, mas também nas temáticas. Em um passeio pelas filiais, vemos diversas palestras, com temas e professores diversos: professores que pesquisam questões de raça, representantes da Richard Dawkins Society falando da importância da ciência isenta, clubes de leitura, intérpretes de Libras, crianças aprendendo inglês ou robótica, idosos com aula de informática, cursos profissionalizantes e de atualização profissional, como de segurança do trabalho, etc.
Isso mostra a sintonia que há na NYPL, divida entre suas filiais, planejadas de acordo com a necessidade da comunidade e do quadro geral: como se aproximar dos adolescentes? Como se preparar para demanda de e-books? Como sanar o problema da analfabetismo digital? Uma das filiais, que está em um bairro de maioria negra, serve como pilar de formação intelectual. O relato de um dos homens exemplifica isso: ele diz que não teve dinheiro ou tempo para se formar em uma faculdade, mas fez os cursos gratuitos da biblioteca e se formou ali.
Outro ponto que surpreende é o planejamento sobre a questão de trazer os usuários sem acesso à internet para dentro da rede. A NYPL fornece computadores e laptops para uso dentro das localidades, mas também aluga pontos de conexão para quem precisa se conectar em casa, mas não assina nenhum provedor de internet.
No entanto, a conclusão da narrativa, que apresenta a biblioteca com forte presença na vida das comunidades (ainda que em processo de aperfeiçoamento constante) e distante da noção de “galpão de livros”, me traz uma pergunta inquietante e ainda sem resposta: qual seria a relevância das bibliotecas brasileiras para seus usuários em tempos como esse? (Na verdade, duas, já que o documentário foi gravado antes das últimas eleições e a presidência da biblioteca mudou de mãos….)
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