A crônica é um dos gêneros basilares da literatura brasileira. Ainda que muitas vezes relegada a um segundo plano, são poucos os leitores que não esbarraram em algum texto do Luis Fernando Veríssimo durante a escola ou que nunca leram algum causo nas redes sociais que tenha a mesma estrutura descontraída da crônica – aquele tom de conversa fiada que esconde um relato poético sobre o cotidiano.
Mas não é só a presença que marca seu papel de destaque. Em segundo lugar, podemos destacar que a inauguração dos textos literários escritos em terras brasileiras foi a partir de uma crônica: a carta de Pero Vaz de Caminha sobre o descobrimento da terra de Vera Cruz. Anos antes da configuração de um sistema literário propriamente brasileira, a crônica foi a pioneira em representar o Brasil nas linhas de um texto mais próximo à noção que temos de literatura hoje.
Nessa época, a crônica era ainda um texto memorialístico. Aos poucos ela se adaptava ao território brasileiro e adquiria aquela cara de texto que aborda o assunto sério em tom leve e o assunto em leve em tom sério. O ponto de partida dessa mudança pode ser datado no ano de 1828, quando o jornal Espelho Diamantino inaugura a imagem do flâneur. Essa figura era um observador de costumes que, como um daqueles boêmios que vagava a esmo pelas ruas de Paris, deveria registrar as suas percepções da cidade. O resultado era um retrato satírico-moralista que, com autores como Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar, daria forma à crônica legitimamente brasileira.
Os relatos desses observadores foram, aos poucos, preenchendo os espaços do folhetim. Vindo da imprensa francesa, esse espaço dos jornais ficou conhecido pela publicação de romances e novelas, mas a verdade é que qualquer texto que não se encaixasse nas normas jornalísticas era taxado de folhetim. Além disso, ele deixa entrever uma relação importante no espaço literário brasileiro, e outro motivo de importância da crônica. Como o mercado editorial brasileiro não pagava as contas dos escritores, o único subsídio para os homens das letras era produzir para os periódicos – modelo que se mantém até hoje, dada as devidas proporções. Ao longo de todo esse trajeto, foi a crônica que muitas vezes financiou a literatura.
Retomando a história, as crônicas também se tornaram destaque nos folhetins brasileiros. Aos poucos, o espaço deixava de ser um espaço de “vale-tudo” e passava a delimitar alguns parâmetros. No caso da crônica, foi José de Alencar quem estabeleceu os parâmetros do gênero no espaço “Ao correr da pena”, a partir de 1894 no jornal Correio Mercantil. Ao legitimar o ofício do folhetinista, Alencar produziu uma síntese entre o texto cotidiano e o histórico e também estabeleceu um diálogo entre escritores e leitores.
A última mudança, que firma a cara da nossa crônica, ocorre na Revolução Industrial. Quando a imprensa se dedica a informar com objetividade e a gerencia os periódicos como produtos industriais, a crônica fica relegada ao espaço do entretenimento. Foi esse “rebaixamento” que permitiu que o gênero ganhasse mais força. O texto, que até então era feito para ser esquecido no dia seguinte, passou a incorporar o poético nas suas linhas e se tornou autônomo – até o ponto em que “pode ser considerado autônomo um tipo de literatura que tem como característica a ambiguidade entre o conto, a reportagem, o ensaio, o humorismo e até o poema em prosa”, como diz Cristiane Costa em seu livro Pena de Aluguel.
A última mudança, que firma a cara da nossa crônica, ocorre na Revolução Industrial. Quando a imprensa se dedica a informar com objetividade e a gerencia os periódicos como produtos industriais, a crônica fica relegada ao espaço do entretenimento. Foi esse ‘rebaixamento’ que permitiu que o gênero ganhasse mais força.
Nesse contexto, víamos o contorno da crônica: ainda que relegada, a crônica não podia deixar de lado a absorção de alguns valores do jornalismo, como a ligação com o atual e sua capacidade de crítica ao meio social, advinda desde a época do flâneur. É desse diálogo que surge aquele texto que parte do acontecimento cotidiano para suscitar as mais diversas reflexões sobre a natureza humana.
Foi tal liberdade (e a remuneração) que fez com que diversos nomes conhecidos do leitor brasileiro utilizassem o espaço como laboratório de escrita. Do movimento modernista, a partir da década de 1930, podemos destacar nomes como Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Carlos Drummond de Andrade. Seguido deles, veio a geração conhecida como “a época de ouro”, com Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Wilson Figueiredo, Murilo Rubião, Paulos Mendes Campos, Autran Dourado, Stanislaw Ponte Preta e Nelson Rodrigues com suas crônicas esportivas. Foi essa mesma geração que marcou a excelência da crônica com Rubem Braga: o primeiro escritor a deixar sua marca na história da literatura brasileira sendo cronista em tempo integral.
Pouca coisa mudou dentro desse molde. Hoje, vemos ainda a crônica nas colunas dos jornais, como as de Antonio Prata ou Luis Verissimo, mas também passam a preencher as páginas de blogs e outras redes sociais. Muitas vezes, como legitimação da produção, os anos de trabalhos das crônicas resultam em coletâneas impressas e publicadas.
Foi pensando nesse tipo de preservação dos textos, que anteriormente não era feito, que a parceria entre os acervos do Instituto Moreira Salles e Casa de Rui Barbosa lançou o Portal da Crônica Brasileira. No ar desde 12 de setembro de 2018, o acervo já conta com 2.527 recortes digitalizados de crônicas, segundo reportagem do Nexo, e continua sendo atualizado. Em entrevista à mesma reportagem, a coordenadora de literatura no IMS, Elvia Bezerra, disse que o acervo tem mais de 10 mil crônicas que irão para o banco de dados.
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