Quando o projeto Tuboteca foi inaugurado, em março de 2013, fui entusiasta da iniciativa. Era encantador pensar que a população teria, a partir daquela data, acesso aos livros sem qualquer tipo de burocracia, sem prazo de devolução, sem custo. Bastaria escolher, levar para casa e compartilhar a leitura. “E se nunca mais devolverem os livros?”, alguns perguntavam. “É sinal de que eles ganharam asas”. Feliz seria uma cidade em que livros fossem furtados, em que poemas fossem armas em circulação, em que autores fossem heróis.
Logo na primeira distribuição, foram colocados mil livros à disposição dos usuários do transporte coletivo da cidade. Para minha alegria, dois exemplares de Dinamite – Uma tragédia em Curitiba compunham o acervo da estação-tubo da Praça Rui Barbosa em sua estreia. Lá estavam os dois, dentre outros, na estante da novíssima Tuboteca. Lá estavam os dois, dentre outros, na foto oficial do dia da inauguração. Lá estavam dois, dentre os dezesseis que doei ao projeto à época de sua implantação. Lá estavam dois, dentre os Dinamites que ganharam asas.
Fruto de uma parceria entre Fundação Cultural de Curitiba, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC) e Urbanização Curitiba S/A (URBS), a Tuboteca surgiu com o intuito de incentivar a leitura por meio de pequenas bibliotecas instaladas em estações-tubo. O discurso do então recém-empossado presidente da FCC, Marcos Cordiolli, era mesmo empolgante. “Além de leitores, nós também ganhamos agentes de leitura, porque todas essas pessoas que estão lendo também estão pegando livro pra levar pra pessoas de seu convívio ou estão estimulando outras pessoas a frequentarem as nossas Tubotecas”.
É de se refletir como uma ideia, à primeira vista promissora, transformou-se em descompasso sob a batuta de Cordiolli.
A quimera, porém, mostrou-se equivocada. A começar pelo nome. Biblioteca é, como aprendemos desde cedo, uma palavra que deriva do grego, composta por βιβλίον (biblion), “livro”, + ϑήκη (theca), “depósito”. Em sua etimologia, biblioteca é um depósito de livros. Em uma acepção moderna, uma coleção de livros. Ora, o lugar dos livros! Assim como pinacoteca é o lugar dos quadros. Tuboteca? Uma coleção de tubos. Vazios.
É de se refletir como uma ideia, à primeira vista promissora, transformou-se em descompasso sob a batuta de Cordiolli. Hoje a Tuboteca, menina-dos-olhos da atual gestão da FCC, é tida como uma proposta mal-estruturada. Para se ter ideia, sua equipe oficial é composta por (apenas) cinco pessoas: uma responsável pela condução do projeto, pela recepção, higienização e caracterização das doações e pela distribuição diária nas estações-tubo; uma que também contribui no processo de recepção daquilo que chega até a Coordenação de Literatura, faz a triagem das obras e é guardiã afetiva do acervo; e três estagiários. A falta de pessoal (carência de todos os setores da FCC) e de estrutura adequada (à Tuboteca é reservado um porão) não condiz com a execução daquele que era visto como um dos principais legados do governo Fruet na área cultural. A impressão que se tem é a de que, não fosse a persistência dos poucos – e obstinados, é preciso dizer – funcionários que trabalham pela Tuboteca, o projeto não vingaria.
O populismo, sem demora, se impõe por meio de muita propaganda. E de números grandiosos. Na página da FCC, fala-se em 136 mil livros distribuídos (leia aqui). Basta, no entanto, pensar: foram constituídos 136 mil leitores? É evidente que não. Na verdade, penso que nem mil novos leitores tenham sido formados. Existem, obviamente, as exceções – o jovem que não tinha tempo de fazer empréstimos em bibliotecas convencionais, a senhora que passou a ler durante suas viagens do centro ao bairro. Isso tudo é muito legal. Mas o que ocorre é que os frequentadores das estações-tubo sequer são estimulados a ler os livros. Não existe nenhum tipo de mediação de acervo – como acontece, de maneira muito mais eficaz, nas Casas da Leitura mantidas pela mesma fundação.
A qualidade das doações é outro aspecto a ser discutido. No geral, as obras doadas são aquelas de que, por razão qualquer (o pai morreu, a filha casou, o neto cresceu, a festa acabou, “e agora, José?”), as pessoas querem se desfazer. O que é arrecadado nem sempre são os melhores livros de um acervo particular – mesmo na era digital, o fetiche pelo objeto-livro persiste e é ainda um exercício de desapego doar um título do qual se gosta muito. Assim, boa parte do material que chega à Tuboteca acaba tendo caráter técnico ou didático. Em suma, livros que estavam encostados, amontoados, largados às traças – nesses casos, por mais insano que possa parecer, acredite: é melhor encaminhar a enciclopédia da década de 60 para os coletores de material reciclável. Se esse tipo de publicação invade o porão do Palacete Wolf, a culpa não pode ser atribuída somente à coordenação do projeto, mas também à falta de percepção cultural sobre doações que podem ou não ser úteis.
Em Curitiba, acesso facilitado aos livros não é, infelizmente, sinônimo de leitura. Nesse sentido, a Tuboteca funciona mais como um sistema de circulação de livros – bom na teoria, nem tão bom na prática -, mas não como dispositivo legítimo de incentivo à prática de ler. De nada adianta disponibilizar cinquenta exemplares diariamente em cada uma das dez estações-tubo da região central e não estimular a leitura efetiva dos mesmos. Nesse processo, muitas vezes é preciso conduzir o cidadão pela mão. Dar a ele atenção. Sozinho, um não-leitor pode até pegar um livro que esteja dando sopa em uma das prateleiras. Isso não significa que ela vá ultrapassar o impulso de ter o livro em mãos para ingressar na etapa de fruição da obra. Eu mesma, dia desses, emprestei um título do paranaense Roberto Gomes na Tuboteca da Carlos Gomes, enquanto esperava pelo Ligeirão Boqueirão. Ainda nem sei quando e se vou terminar de ler. Talvez eu devolva Alegres Memórias de um Cadáver sem ao menos ter concluído sua leitura.
O leitor perspicaz há de convir: 136 mil livros é coisa pra caramba. Continua parecendo inspirador pensar em 136 mil livros que ganharam asas. Mas já pensou se esse montante fosse distribuído por espaços culturais ou mesmo em escolas públicas da cidade? Se um trabalho de mediação de leitura tivesse sido desenvolvido com essas obras? Acho que seria muito mais válido.
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