Um homem, na casa dos trinta anos, retorna para a casa dos pais e da irmã, de quem se apartou em definitivo por um trauma. Hoje residente nos Estados Unidos, Marcelo precisa voltar até Ourives, vilarejo no qual se desdobrou a sua infância, para reencontrar sua família, uma vez que o pai está à beira da morte.
Ainda que este seja um resumo possível a Amanhã Tardará (Tusquets Editores, 2024), romance do escritor cearense Pedro Jucá, o que importa nele não é o destino trilhado pela história, mas o caminho. Mais do que descobrir o que ocasionou o aparte familiar, o que nos interessa aqui é entender quais foram os entraves que o afastaram por definitivo de seu lugar de origem.
Esta não é a parábola de um filho pródigo, mas sim a lembrança de um homem que descobre sua sexualidade aos poucos, em meio a uma comunidade conservadora e pouco aberta a abraçar aqueles que “desviam” das regras estabelecidas. Isto serve para Marcelo, mas também ao pai, um alcoólatra embrutecido, e à irmã Nine, que, na escola que frequenta em Ourives, é alvo de bullying e projetada como alguém sem futuro.
Tal como pontuam as correntes que fluem no rio que nomeia a pequena vila, nada que existe é estanque ou definitivo – e, pelas tramas tecidas por Jucá neste romance envolvente, vai ficando claro que estamos diante de personagens tridimensionais. Não há aqui pessoas boas nem más, nem ninguém que se mostre incapaz de mudar o rumo de sua vida. Se, em certos momentos da história, Marcelo e Nine parecem duas crianças perdidas e desencaixadas, eles são igualmente capazes de alterar as rotas de seus destinos.
Não obstante, como Amanhã Tardará bem nos esclarece, isso não significa que tudo que foi vivido não deixe marcas permanentes. O grande enigma é como lidar com isso. Jucá, que escreve lindamente, nos conta por meio de seu protagonista: “não era justo que eu sentisse raiva de minha mãe por não ser mais quem era antes. Além disso, por mais diferentes que estivéssemos, não teríamos como ir muito longe: comungar de um passado é elo que não se muda nem se move”.
‘Amanhã Tardará’: prestação de contas com o passado

Nesta obra claramente psicanalítica, o passeio empreendido por Pedro Jucá é o de um homem que se confronta com a própria história buscando maneiras de (re) significar o presente. Ao voltar a Ourives, Marcelo relembra como a morte do tio, por suicídio, anunciou a forma como a sua homossexualidade seria tratada dentro do âmago familiar. No pequeno universo compreendido por Ourives, a manutenção dos segredos é preferida ao enfrentamento da realidade, o que deixa marcas indeléveis de sofrimento em todos.
Nesta obra claramente psicanalítica, o passeio empreendido por Pedro Jucá é o de um homem que se confronta com a própria história buscando maneiras de (re) significar o presente.
Mas, mais uma vez, a viagem realizada por Marcelo em seu retorno é antes interna que externa. Amor e mágoa se fundem – tal como em praticamente toda família que já existiu –, enquanto ele se questiona sobre a forma que resgata as coisas: “muito se diz da natureza enganosa da memória, mas, quando revisito esses esquetes familiares, o que primeiro me vem à cabeça é sua potência estabilizadora: se engana, se distorce os eventos, é antes por defesa que por defeito. Esquecer talvez nos custe mais energia do que lembrar, mas o corpo o escolhe porque é sábio”.
Seria possível suportar a realidade dos fatos? Se o corpo é parte central na experiência de vida de Marcelo (e ele rememora o tempo todo as suas reações corporais enquanto lidava com a descoberta da sexualidade), o fato é que, como Pedro Jucá bem sabe, a família também é um grande organismo do qual fazemos parte.
Mesmo tendo apartado-se do seu núcleo, Marcelo sabe que, ao longo do tempo em que permanece distante da mãe, da irmã e das sobrinhas, há um pedaço de si que segue em angústia. Ele se questiona: “existe mesmo um fio vermelho a ligar todas as coisas, todas as pessoas, todos os tempos? Existe mesmo um fio vermelho a mostrar o caminho de volta — a mostrar o velho o verso da trilha? E se a esse fio, fio a fio, se juntam outros fios, ele vira uma malha ou uma corda?”.
Ao encarar de maneira lírica (e mesmo corajosa) a impossibilidade de se romper em definitivo os elos que nos ligam à família, Pedro Jucá nos entrega um romance que consegue ser terno e contundente. Uma obra que merece ser lida.
AMANHÃ TARDARÁ | Pedro Jucá
Editora: Tusquets;
Tamanho: 320 págs.;
Lançamento: Julho, 2024.
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