Em uma de suas entrevistas, perguntaram a Ursula K. Le Guin a origem de suas ideias. Como resposta na ocasião, a autora disse: “de esquecer que li Dostoiévski e lendo sinais de estrada ao contrário, naturalmente. De onde mais?”. Ainda que pareça uma resposta confusa para esse tipo de questão, ela diz respeito principalmente ao conto ganhador do Hugo, “Aqueles que abandonam Omelas”.
Publicado no começo da década de 1970 e com poucas traduções para o público brasileiro nessa época, o conto recebeu uma nova tradução no Projeto Cápsulas da Editora Morro Branco, uma iniciativa que publica contos gratuitos em seu site e também os envia por e-mail via newsletter.
A primeira publicação foi Acender uma fogueira, de Jack London. Depois, ela publicou Sons da Fala, de Octavia E. Butler. Agora, Aqueles que abandonam Omelas recebeu uma tradução de Heci Regina Candiani – e, aproveitando a curta extensão do conto, sugiro a leitura antes de continuar a rolar a página.
Após a leitura do conto, as respostas podem parecer mais claras. A cidade de Omelas, por exemplo, surgiu durante uma viagem da autora, que leu a sinalização da cidade de Salem, no Oregon, pelo retrovisor de um carro. Já no que diz respeito a Dostoiévski, a observação está relacionada a uma questão trabalhada em Os Irmãos Karamázov: o problema da Criança Torturada.
Svetlana Aleksiévitch resume a questão na epígrafe de Últimas Testemunhas, obra que traz relatos de crianças soviéticas durante a Segunda Guerra. Ela escreve:
“No passado, Dostoiévski fez a seguinte pergunta: e será que encontraremos absolvição para o mundo, para a nossa felicidade e até para a harmonia eterna se, em nome disso, para solidificar essa base, for derramada uma lagrimazinha de uma criança inocente? E ele mesmo respondeu: essa lagrimazinha não legitima nenhum progresso, nenhuma revolução. Nenhuma guerra. Ela sempre pesa mais.
Uma só lagrimazinha…”
Dessa forma, na abertura de seu conto, Le Guin nos apresenta uma sociedade utópica, adequada aos paraísos pessoais. Nessa sociedade não há classes: sem soldados, escravos, cleros, estado ou mercado financeiro. O clima geral é de “um contentamento sem amarras, generoso” e que celebra unicamente a vida. Aos que gostam de drogas, há drogas; aos que gostam de orgias, há orgias. A cidade se adapta aos paraísos e lugares ideais de cada um de seus habitantes.
Le Guin nos apresenta uma sociedade utópica, adequada aos paraísos pessoais. Nessa sociedade não há classes: sem soldados, escravos, cleros, estado ou mercado financeiro.
No entanto, a descrição começa a tomar formas estranhas quando Úrsula apresenta o interesse problemático dos nossos intelectuais de considerar a dor e a infelicidade como superiores à felicidade. A partir daí, ela nos traz o entendimento de uma “banalidade do mal”.
Charlie Jane Anders publicou um texto no Gizmodo intitulado “Ursula K. Le Guin, Fiodor Dostoiévski e o conforto aconchegante do mal”. Ele retoma o nascimento da expressão da banalidade do mal, vindo de um estudo de Hannah Arendt sobre o julgamento de Eichmann, um oficial nazista. A conclusão de suas observações dizem que “o mal pode ser institucionalizado e sistematizado, até que nenhum de seus participantes percebam que estão fazendo algo errado”, tornando-se comum e cotidiano.
Para Anders, o uso desse termo pela autora aponta para dois caminhos: no primeiro, há a crítica à intelectualidade artística e filosófica, de não apontar a maldade nos atos cotidianos; por outro, podemos ver uma própria sátira na escrita do conto, de focar e procurar apenas os lados positivos e utópicos, sem entender o que há de nocivo.
É depois dessa virada que ela nos apresenta o que sustenta a perfeição da cidade e seu festival: é uma criança trancafiada no subsolo “de um dos belos edifícios públicos” ou “no porão de uma de suas espaçosas residências”. Ali, sem iluminação e com pouca alimentação, uma criança sofre. Sua miséria e sofrimento é o que sustenta a pujança do resto da sociedade.
Se trazida à luz do sol, “toda a prosperidade, a beleza e o prazer de Omelas feneceriam e seriam destruídos”. É com base nesse dilema que Úrsula constrói o seu conto. A narrativa não possui nenhum grande desenvolvimento dramático e é focado nessa reflexão filosófica. Interpretações alegóricas surgem de maneira instantânea durante a leitura do conto – principalmente ao refletirmos sobre as enormes taxas de desigualdade e insatisfação que vemos nos jornais.
No entanto, podemos ir em um passo além. Úrsula comenta que, muitas vezes, as pessoas ficavam insatisfeitas com a estruturação da cidade e saíam da cidade: “o lugar para onde vão é um lugar mais difícil ainda de imaginar para a maioria de nós do que a cidade da alegria. Não consigo descrevê-lo em absoluto. É possível que nem exista. Mas eles parecem saber para onde estão indo, aqueles que abandonam Omelas”.
Para não me prolongar, encerro com uma observação: a proposta para uma utopia real, não baseada em sofrimento, aparece pelo narrador como algo tremendamente difícil de imaginar. No entanto, em um episódio do podcast Suposta Leitura, Lucas e Raíssa discutem sobre o fato da omissão e/ou tentativas de mudança dessa sociedade. O interessante destacado por eles é a ligação desse conto com outras duas obras, o conto “O dia antes da revolução” e o romance Os Despossuídos. Neles, Úrsula nos apresenta uma personagem que abandonou Omelas e buscou sociedade utópica e anárquica, que pode ser vista como uma resposta para a indecisão do narrador.