É fácil pensar que, em tempos como os nossos, a violência tem se tornado uma comunicação comum. Seja nas mensagens das redes sociais, na truculência policial ou nas próprias medidas políticas, o ódio parece ter se tornado uma linguagem universal. Mas, é preciso tomar distância e refletir sobre essa impressões e generalizações de maneira mais cautelosa — afinal, não é difícil encontrar cicatrizes da violência ao longo de nossa história.
Em seu livro Autodefesa: uma filosofia da violência (lançado pela Ubu neste ano; tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo), Elsa Dorlin questionou os significados sobre força e violência durante sua retomada sobre os conceitos de legítima defesa e a autodefesa ao longo de diferentes regimes de dominação.
Sua exposição parte da diferença entre a autodefesa e o direito exclusivo de legítima defesa daqueles que têm propriedades e podem usar da violência para defendê-la — discussão integrada ao direito ao porte de armas, por exemplo. No oposto dessa garantia dada às classes dominantes, estão os grupos racializados e/ou subordinados. Muitas vezes sem o direito à posse do próprio corpo, as minorias têm seu ato de defesa — que quase sempre parte do espaço da resistência à violência da sociedade e do Estado — negado. Sua resistência é transformada em agressão primária.
Para estabelecer essa diferença, Dorlin usa como exemplo um método de tortura que transforma em carrasco o corpo do torturado. “Essa tecnologia de tortura tem como finalidade única aniquilá-lo, mas de tal modo que, quanto mais ele se defender, mais sofrerá”. A autodefesa é associada ao movimento muscular, ao impulso de se preservar e salvar a própria vida.
Sua exposição parte da diferença entre a autodefesa e o direito exclusivo de legítima defesa daqueles que têm propriedades e podem usar da violência para defendê-la.
A partir daí, vemos um panorama sobre a presença da autodefesa em diversos momentos da nossa história. Dorlin parte do desarmamento de escravos e ex-escravos (com um estatuto abrangente, visto que uma caneta ou um lápis poderiam ser considerados armas).
Esse período colonial restringiu o acesso às armas aos negros, indígenas e colonizados, enquanto deu a uma minoria branca de colonos não só o porte, mas também o direito de polícia e justiça — o que levou a linchamentos e execuções sumárias. Como possibilidade de resistência, os grupos marginalizados se organizam em rodas de dança, passavam a energia hostil e a tensão acumulada aos passos e movimentos. Pensando em movimentos dialéticos, da opressão e sua resistência, surgem movimentos de síntese — como a cooptação de minorias no corpo dos exércitos.
Ao longo dessa exposição, a autora compõe diversos regimes controladores e a contraparte das minorias e suas autodefesas: o jiu-jitsu das sufragistas inglesas, o movimento dos Panteras Negras e os movimentos de não-violência da frente estudantil ou de Martin Luther King Jr., as patrulhas queer e as defesas simbólicas de mulheres em romances ou videogames.
Por fim, o interessante é como a questão é relacionada com a atualidade — e como as duas forças se relacionam. Elsa Dorlin termina com o caso de Trayvon Martin, assassinado por George Zimmerman — um cidadão comum que assassinou um jovem negro porque “parecia suspeito”. George foi inocentado. A morte de Trayvon, no entanto, foi o estopim para o movimento do #BlackLivesMatter.
Algum tempo depois, a morte de George Floyd por asfixia em uma via pública durante uma abordagem policial inflama o espaço público e diversos protestos ecoam pelas ruas dos Estados Unidos. Como um reflexo, enquanto as ruas estão tomadas por ativistas, um grupo de supremacistas brancos resolve juntar dinheiro e pagar a fiança do policial que assassinou Floyd.
A reflexão final do livro soa como o final de BlacKKKsman, de Spike Lee, quando vemos imagens reais de protestos sendo reprimidos por supremacistas brancos. Exemplos não faltam, sejam os atuais ou os outros diversos apresentados por Dorlin. Supremacistas, vigilantes, multidões prontas para linchamento e um corpo policial que mata minorias de maneira impune ainda assola nossos noticiários.
Por isso, a reflexão de Elsa Dorlin é necessária. Como diz Butler no prefácio, “este livro é uma forma de violência prestativa e cuidadosa — uma forma de violência não para destruir um outro, mas para se contrapor à matriz de inteligibilidade que impede que minorias se tornem sujeitos com direito sobre a própria vida”.
AUTODEFESA: UMA FILOSOFIA DA VIOLÊNCIA | Elsa Dorlin
Editora: Ubu;
Tradução: Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo;
Tamanho: 320 págs.;
Lançamento: Setembro, 2020.