Na semana passada, vimos quais elementos compõem a narrativa de um jogo digital e de que maneira esta narrativa pode dialogar com a literária. Vimos como a narrativa de um jogo se complexificou ao longo dos anos, como o livro também pode trazer elementos vistos nos jogos, como a interatividade em livros como O Jogo da Amarelinha, de Cortázar, ou S., de J. J. Abrams e Douglas Dorst. Agora, veremos de que maneira é possível estabelecer um diálogo mais intenso entre essas duas linguagens partindo do jogo What Remains of Edith Finch e o trabalho do autor Jorge Luis Borges.
Lançado em 2017, o jogo What Remains of Edith Finch foi desenvolvido pelo Giant Sparrow e publicado pela Annapurna Interactive. Atualmente, o jogo está disponível para PC, Playstation 4, Xbox One e Nintendo Switch. Acompanhando a leitura do caderno de Edith Finch, a última da linhagem na família, o jogo mostra uma suposta maldição que faz com que apenas um filho de cada geração sobreviva. Para descobrir essa história, Edith voltou para explorar a casa da família logo após a morte de sua mãe. A casa estava abandonada fazia anos, desde que sua mãe as levou embora de lá, para se afastar da maldição.
Explorando os altares e as anotações sobre as vidas de seus antepassados, Edith vai descobrindo as memórias de cada um de seus parentes e remonta sua árvore genealógica. O jogo é, então, apresentado como uma antologia dessas experiências que se conectam e montam o retrato da família Finch.
Pensando na narrativa do jogo, o primeiro destaque a ser feito é que ela é interativa. Não que tenha diversos finais ou permita a escolha de diversos desenrolares para a história, porque não tem. O final é único e a trama é particular. O que define esse caso de interatividade é a possibilidade do jogador tomar decisões e organizar sua própria experiência. Ao se tornar Edith, o jogador escolhe quais elementos da história ele vai conhecer.
Em segundo lugar, vamos pensar nos cinco elementos destacados. O Enredo, conforme vimos acima, é a redescoberta de Edith sobre o passado de sua família; o Tempo e o Espaço são caracterizados pelo dia da visita em 2017 de Edith na casa da família (mas, em outros momento, Edith também vive momentos específicos desde os anos 1880 até o momento da visita); os Personagens são todos os antepassados Finch; e a Narradora é a própria Edith Finch.
A Edie me contou uma vez que todos os Finchs que já viveram estão enterrados em algum lugar na biblioteca – What Remains of Edith Finch.
Nessa estrutura, a casa tem um papel importante. Ela está repleta de detalhes que marcam a história dos outros parentes – como o último dia em que alguém tomou os remédios, qual a última refeição feita na casa, quem tinha problema de saúde, quais profissões, hobbies dos personagens e etc..
Além disso, a casa está repleta de livros. Como uma imensa biblioteca, os títulos espalhados são sobre diversos assuntos. Há diversos tipos de livros teóricos, como os sobre trens ou sobre homeschooling, há diversos romances, como A Metamorfose, de Franz Kafka, Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, ou Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Todos eles estão relacionados, de alguma forma, com a história da família.
De todos os livros, os que mais me chamaram a atenção foram os de Jorge Luis Borges e ele tem um papel importante dentro da narrativa do jogo – notável pelo número de livros do autor, como O Aleph, Ficções e O Livro de Areia. Em primeiro lugar, Borges, trouxe para literatura uma visão filosófica da linguagem. Parte dessa visão era composta pela dependência da linguagem (e, principalmente, da palavra escrita) para qualquer existência: o registro de um acontecimento equivale pelo acontecimento em si e é a presença de um registro escrito que faz com que o mesmo acontecimento seja lembrado e possa se tornar relevante.

Tanto que em suas obras, cria uma espécie de Paraíso cuja forma é uma Biblioteca Infinita que abrange todos os livros escritos, não-escritos e os que ainda serão escritos, livros em todas as línguas. Isso, intuitivamente, também inclui a vida de todos os seres. A partir disso, podemos pensar no papel que a biblioteca e os livros têm no jogo.
Em um determinado momento do jogo, Edith fala sobre sua bisavó: “A Edie me contou uma vez que todos os Finchs que já viveram estão enterrados em algum lugar na biblioteca”. Dessa forma, temos a construção de um Universo-Biblioteca para os Finchs. A casa da família é construída em função das narrativas de vida dos personagens. Cada personagem tem um altar dedicado à sua memória. Em cada altar, um livro permite o acesso dos últimos momentos de um parente.
Por fim, a existência dos Finchs e suas memórias são visivelmente dependentes dos relatos deixados – recortes de jornal, roteiros, fotos, etc. É a partir deles que Edith consegue reviver e se conectar com seus antepassados, compreender a história da sua família e descobrir a si mesma (além de deixar um diário que possibilidade o compartilhamento desse conhecimento). Essa postura de leitura tomada pela protagonista aproxima-se com algo caro a Borges nos contos policiais que escreveu: a visão da leitura ativa.
Em diversos momentos de sua produção, Borges mostrou como o leitor participa de maneira ativa em uma narrativa policial. Além dos textos teóricos, um conto em que isso fica visível é “A Morte e a Bússola”. Nele, Borges mostra como um detetive e um assassino assumem posturas diferentes para se aproximar da mesma narrativa: o fato do crime. Em What Remains of Edith Finch, visualizamos a leitura ativa da protagonista – já que é graças a sua postura investigativa que, dos textos dos parentes, surgem memórias que nos permitem experienciar o jogo.