O nome de Bruno Schulz já apareceu aqui na Escotilha e minha intenção, ao trazê-lo novamente, é chamar atenção a alguns pontos que, desde muito tempo, fazem de mim um apaixonado por seus dois pequeninos livros (nem param em pé sozinhos, mas quanta profundidade naqueles dois tomos…).
O “gnomo, pequenino, de cabeça grande”, conforme o descreveu Witold Gombrowicz, nasceu em 12 de julho de 1892 e morreu em 19 de novembro de 1942 (nada de cabalístico, mas não deixa de chamar atenção que ele tenha nascido no auge do verão e sido assassinado num quase inverno). Mas não quero falar da vida de Schulz, e nem este será o único texto que escreverei sobre um dos maiores escritores poloneses (mundiais, eu ousaria dizer) do século XX.
Se conversarmos com um polonês sobre o autor (ele é leitura obrigatória nas escolas), obteremos uma resposta uníssona: que autor difícil! Que linguagem complexa! Se alguém já leu, e eu recomendo vivissimamente que leia, as excelentes traduções de Henryk Siewierski (professor da UnB), verá que, de fato, sua linguagem é desafiadora.
‘Embriagados com a luz, folheávamos esse grande livro das férias, cujas folhas todas ardiam de tanto fulgor e tinham no fundo a polpa das peras douradas, doce de desmaiar’.
“O louco afogado” (ainda Gombrowicz) tinha seu estilo marcado por uma potência verbal ímpar: “embriagados com a luz, folheávamos esse grande livro das férias, cujas folhas todas ardiam de tanto fulgor e tinham no fundo a polpa das peras douradas, doce de desmaiar” (p. 17), eis como termina o primeiro parágrafo de “Agosto”, conto que abre Lojas de Canela (originalmente publicado em 1933, com data de 1934, tendo já merecido duas traduções do mesmo Siewierski, a primeira de 1996, a segunda de 2012). Contudo, não apenas a forma é complexa, como também a temática não é simples.
Um primeiro olhar diria que são histórias, algo fantásticas, de um menino e sua família numa cidadezinha perdida no interior da Polônia. Leitura possível? Sem dúvida, mas creio que há todo um universo a ser explorado.
Para que possamos tatear, às cegas, um pouco deste universo, quero falar de um dos muitos elementos que me fascinam em Schulz. Trata-se de uma personagem enganosamente secundária: Anna Csillag.
“Eu, Anna Csillag, nascida em Karlovice, na Morávia, tinha pouco cabelo…” (p.123), lê o pequeno Józef (que pode ser identificado com Bruno, embora não haja, ao longo da obra, qualquer menção expressa a isto) em uma revista que considera ser o Livro, o verdadeiro livro, o livro original.

Anna Csillag aparece como uma apóstola da peluginosidade, que devolvia, graças ao tônico capilar revelado por ninguém menos que Deus, os bigodes e os cabelos a todos os homens e mulheres que padecessem do terrível mal da calvície (bem que seria útil para mim…).
Há algo de messias em Anna Csillag, algo de redenção, ainda que capilar, naquela senhora que fazia sua propaganda em variados jornais e revistas do multilinguístico Império Austro-Húngaro; pois, sim, Anna Csillag é uma figura não ficcional.
Suas propagandas fizeram muito sucesso antes do fim do mundo da Segunda Grande Guerra. Transcriada literariamente, Anna Csillag nos dá uma possibilidade de leitura interessante de todo o fazer literário de Schulz: as regiões da “poesia pura” (p. 125) estão justamente na realidade quotidiana, não nos mitos do passado, não nos arcanos cabalísticos.

A apóstola (uma mulher, o que também renderia muita análise da personagem) traria não a boa-nova da salvação, mas apenas uma cabeleira mais vasta. Se traria algo mais, não sabemos. Bruno Schulz escreveu um terceiro livro, que nunca veio a ser publicado, e que teria o sugestivo título de Mesjasz (O Messias). Os estudiosos de Schulz (não apenas poloneses) costumam considerar este livro que não-veio-a-ser a sua obra prima.
Assim como surge, Anna Csillag desaparece. O signo do mistério se instaura sobre ela e, na obra de Schulz, já não ouviremos menção ao seu nome. Contudo, diversos outros artistas se referem a ela, cito, dentre outros, Czesław Miłosz (Nobel de literatura de 1980) e Karl Kraus (dramaturgo austríaco).
Antes de encerrar, deixo também uma sugestão musical. Anna Szałapak, cantora polonesa, canta Anna Csillag, canção com trechos do texto de Schulz, do poeta polonês Bolesław Leśmian e musicada por Zygmunt Konieczny. Ouça a música abaixo.
https://www.youtube.com/watch?v=MW2r4d6NU-U
Ainda haverá mais sobre Schulz e seu mundo, no qual sopra “um aroma de violetas, sem saber se era a magia da noite que prateava a neve ou se já amanhecia”.