Kafka, em carta ao amigo Max Brod, comentou que um livro só vale a pena ser lido quando se parece com uma pancada na cabeça. É preciso, como bem disse Cortázar, vencer o leitor por rounds ou nocautes. A literatura é aquilo que está entre o autor e o leitor, um pacto sinistro de confiabilidade e segredo, na maioria das vezes. O escritor baiano Matheus Peleteiro entendeu bem o que isso significa exatamente. Seu segundo livro, Notas de Um Megalomaníaco Minimalista (Giostri, 82 páginas), é um grande painel das dúvidas, certezas pré-concebidas e autoconfiança moldada a fogo da geração de 20 anos.
Se em seu primeiro trabalho literário, Mundo Cão, Peleteiro sobe o morro para apresentar os conflitos da juventude marginalizada, em Notas cria uma casa de espelhos com os dramas da classe média. A preocupação do escritor não é esmiuçar as falhas de seus personagens, mas estabelecer um jogo de metáforas entre expectativa e realidade. O narrador, um homem sem nome, de repente encontra Letícia, uma jovem por quem se apaixona, ou deseja, como o próprio nos conta, e os dois iniciam um jogral de incompletude e devaneio.
Notas está, de alguma maneira, em sintonia com o que há de mais fino e precioso da arte brasileira.
Para Matheus, a mudança de perspectiva – da favela para os bairros longe das regiões de periferia – nasceu de uma necessidade de contar um pouco sobre si mesmo. Algo parecido vemos no cinema nacional, como em O Som ao Redor e Aquarius, que voltam seus olhares para a regiões mais nobre do Recife, mas sem perder o humanismo. “A falta de perspectiva sobre o futuro é gritante em todas as classes, e eu via a minha geração constantemente nocauteada, confusa. Sinto que tenho um compromisso comigo mesmo em registrar sob a minha ótica os temas que inquietam a estrutura das coisas. Resolvi fazer o trabalho de um fotografo, fotografei, e imprimi com o meu olhar”, reflete ao autor em entrevista exclusiva à Escotilha. (leia a conversa completa abaixo).
Notas está, de alguma maneira, em sintonia com o que há de mais fino e precioso da arte brasileira.
Extremo
Como Christopher McCandless, o narrador é um homem em busca de sensações, que precisa chegar ao seu extremo parar quem realmente é. Pouco a pouco ele vai tateando o caminho para chegar à Letícia que, até certo ponto, ele sabe ser inatingível. Como K. n’O Castelo, sabe que não se chegará a lugar algum, ainda assim é preciso tentar, correr até um determinado objetivo, até quase alcançá-lo e ver os sonhos escorrer como areia nas mãos.
Leia na íntegra a conversa com Matheus Peleteiro
Escotilha: Mundo Cão, seu primeiro livro, é mais visceral, escancarado e Notas de um megalomaníaco minimalista é mais lírico e cerebral. Por que a mudança no tom?
Matheus Peleteiro: Muitos autores prezam pela identidade, se preocupam em manter uma linha e não se permitem mudanças. Eu acho que isso significa impor um limite em si próprio, e eu não gosto muito de limites.
Sim, Mundo Cão é, de fato, muito mais visceral. Em Mundo Cão, eu queria, com 17 anos (quando comecei a escrevê-lo), dar uma porrada, registrar a confusão que via ao meu redor, já com o Notas de Um Megalomaníaco Minimalista eu quis me apresentar, trazer diferentes perspectivas sob questões que abrangem a minha geração. Escrever, para mim, é uma questão de momento. Escrevo o que preciso dizer a cada instante.
Acho que a mudança aconteceu porque eu não consigo fazer nada igual. Estarei sempre tentando fazer algo diferente, para que não caia no comodismo de reproduzir a mesma coisa. Só me preocupo em continuar escrevendo livros que, qualquer um, seja um grande crítico, ou alguém que nunca leu um livro inteiro, possa ler, entender a mensagem, e se identificar em algum momento, ainda que isso aconteça de diferentes formas. Prezo pela universalidade, não busco identidade. Quero variedade, imensidão.
Em um determinado ponto do livro você toca em um tema delicado: política, no sentido de crítica social. Qual o papel da (sua) literatura nas questões sociais?
Já ouvi de muita gente sou “cético e pessimista”, outros, me disseram que sou um tanto idealista. Acho que, nesse tema, me encontro num improvável misto entre essas características. Acredito que a literatura sempre será capaz de reforçar o senso crítico das pessoas, o que já constituiria um papel suficiente, mas, carrego um sentimento ingênuo de esperança ao acreditar que a literatura pode ser também um instrumento de mudança, ainda que cada vez mais a leitura seja deixada de lado pela sociedade.
Acho que o papel da minha literatura nas questões sociais é poder, através do que é exposto, trazer temas contemporâneos para debate sob um prisma da verdade. Me preocupo em não trazer em meus livros imposições. Poderão ler qualquer um deles, sei lá, em 2025, observar os comportamentos e as dúvidas, e debater até mesmo sob um prisma sociológico. Minha literatura é como um registro crítico.
Não acho que há uma necessidade na literatura de trazer questões sociais, mas, acho que a literatura nacional carece disso, e eu realmente gosto de passear pelo tema, talvez por influência do rap nacional. Meu próximo livro será uma sátira política. Acho que a literatura pode tirar a seriedade da política e, com isso, talvez fazer o leitor enxergar o tema com menos paixão. A seriedade torna o homem pragmático, sisudo, e o homem sisudo deixa de enxergar.
Você cita Thelonious Monk: o piano não tem notas erradas. A mesma metáfora vale para a literatura, não existem palavras erradas?
Não, dessa vez vou ter que discordar. Quando o Rubem Fonseca ganhou algum prêmio em Portugal, lembro que a primeira coisa que ele disse foi “na literatura não existem sinônimos”, e até trouxe o capricho do Flaubert para escrever Madame Bovary como exemplo. Acho que, em cada frase, certas palavras se encaixaram perfeitamente, e outras são apenas uma espécie de “armengue”.
É a mesma coisa do cinema. Uma palavra trocada por um sinônimo pode dar à um grande diálogo um aspecto de novela das 18h. Existe uma questão harmônicas nas palavras, é importante observar como cada uma delas soará em cada situação.
A literatura, como qualquer expressão artística, vive um momento de incerteza. Por que ainda se preocupar em fazer literatura?
Um motivo eu realmente não sei, mas acho que todo escritor gosta de abraçar a dor, descontar todas as loucuras do mundo e do peito no papel. Meu objetivo é tocar quem ainda não foi tocado. É fazer uma geração tentar se encontrar. Acho que a literatura é uma forma de suportar, e, por isso, acho que poderia, através dela, consolar a muitos, e a mim mesmo.
Eu escrevo porque ainda acredito que posso tocar pessoas como o Bukowski me tocou pela primeira vez, quando eu estava ingressando no ensino médio frustrado com a literatura depois de ler Castro Alves e Machado de Assis. Acredito que posso apresentar a literatura sob uma outra ótica, já que muitos se afastaram pelo aspecto precoce em que ela é apresentada nas escolas. E a cada mensagem que eu recebo me dizendo que ao ler meu livro se depararam com algo que antes lhes era estranho, eu sinto que tenho um propósito.
Num dos seus poemas, o Bukowski escreveu: “a poesia anda devagar, eu acho, e quando os teus mecânicos mais comuns começarem a trazer livros de poesia para ler na hora do almoço, aí saberemos, com certeza, que estamos na direção certa”. Acho que o mesmo se aplica a literatura, e é por isso que eu me preocupo em propagá-la.
A sua literatura transita entre o cinema e a música. A sua criação é propositalmente hipertextual?
Sim. Eu acredito que somos um retalho das experiências que tivemos. Eu sempre tive um certo tesão pelas palavras, mas fui apresentado à literatura muito tarde, já com 16 anos. No entanto, até lá, fiquei fissurado com diversas ideias trazidas em filmes. Cheguei a copiar diálogos no caderno e ficar relendo. Também ouvi diversos discos de rock, samba e rap, principalmente.
Acho que tudo isso pertence a uma mesma atmosfera. Um disco às vezes pode provocar o mesmo impacto que um livro, ou até um impacto maior. Sou contra a segregação e o distanciamento dos segmentos da arte. Eu gosto é do sincretismo artístico. Para mim, o importante é sacudir a mente do leitor, e do autor também.
Notas de Um Megalomaníaco Minimalista é um importante retrato das angústias da classe média e também da geração atual. Em Mundo Cão você cria um prisma da periferia. Como nasceu a ideia de trabalhar esse novo contexto?
Acho que foi um sentimento despertado depois de ler o Fitzgerald. Estive lendo muitos livros dele num período antes de começar o Notas. Nunca morei em favelas ou bairros considerados pobres, mas me interessava muito em dialogar com as pessoas desse meio. A pobreza cria muitos sábios, muitos valores. Em Mundo Cão, escrevi muita coisa tendo como respaldo o rap, alguns diálogos e outras poucas experiências. Fui surpreendido ao receber cerca de 10 mensagens de pessoas que disseram morar em favelas de outros estados dizendo que se sentiam exatamente como o personagem na favela Roda Viva (não sabiam que era fictícia, afinal, não eram daqui). Sou movido por observações e pela ficção.
Vivo num ambiente da classe média, e, pensei, “por que não escrever minhas impressões sobre ela? ”. A falta de perspectiva sob o futuro é gritante em todas as classes, e eu via a minha geração constantemente nocauteada, confusa. Sinto que tenho um compromisso comigo mesmo em registrar sob a minha ótica os temas que inquietam a estrutura das coisas. Resolvi fazer o trabalho de um fotografo, fotografei, e imprimi com o meu olhar.
Meu objetivo é tocar quem ainda não foi tocado. É fazer uma geração tentar se encontrar. Acho que a literatura é uma forma de suportar, e, por isso, acho que poderia, através dela, consolar a muitos, e a mim mesmo.
Em Mundo Cão, Bukowski é uma influência muito nítida. Em Notas se vê ecos existencialistas, niilistas e kafkianos. Poderia comentar sobre essa mudança de perspectiva?
Quando resolvi escrever Mundo Cão era bastante jovem, mas, já tinha lido um pouco de Kafka e Dostoievski, já era fissurado no existencialismo, contudo, talvez pelo momento que vivia, não quis deixar muito de mim na obra, e sim um retrato da minha geração. Passei a observar como as pessoas ao meu redor viam as coisas, como se sentiam confusos os homens ao escutar as reivindicações feministas, o momento político, os black bloks… Além de estar devorando Bukowski, Fante, e Céline. O cenário marginal tinha me fascinado, e naquele momento eu senti a necessidade de trazer a minha realidade para ele.
Acredito que minhas ideias não mudaram desde então, no entanto, em Notas, me senti mais confiante e resolvi me expor. É claro que existe muita ficção nele, mas assisti à trilogia Before Sunrise e li o A Hora da Estrela da Clarice Lispector, e, de repente, me vi escrevendo em blocos de notas do celular tudo que passava por minha cabeça, por isso o título começa com “notas”, o que talvez soe estranho para uma novela.
Acho que não houve uma mudança de perspectiva pessoal minha. Só resolvi escrever um livro com outro objetivo. É claro que em cada obra deixo um pedaço de mim, mas, como você disse, eu diálogo com a música, com o rock, e minha literatura sempre vai ser uma espécie de metamorfose ambulante. Eu nego as certezas, me apego a ideias, e em cada livro, crio um mundo de reflexões dentro de mim, que nem sei me pertencem ou se estou inventando.
Se compararmos o cenário atual da literatura com duas décadas atrás veremos que é muito fácil publicar, no entanto, ainda não é fácil ser lido. Quais são os desafios do escritor do século XXI?
Acho que o problema não está na facilidade da publicação. Acredito que essa facilidade impede que as grandes empresas dominem a literatura, e permite a inserção de diversos grandes autores pobres na literatura. A literatura costumava ser bastante elitista, hoje, ainda é um tanto, mas estão tendo que engolir grandes autores que surgem das ruas, assim como Bukowski surgiu em Los Angeles há alguns anos.
A partir dessa facilidade, teoricamente tudo ficaria mais fácil, contudo, acho que o grande desafio do escritor é enfrentar a internet. A internet sequestrou as mentes das pessoas. Antigamente, as pessoas costumavam ler quando não tinham o que fazer em casa, e terminavam seduzidas pela coisa, criando o hábito da leitura. Hoje, a internet não permite que a abandonem. E não é uma questão de preferirem a internet que os livros, é uma questão de vício. Dificilmente conseguem abandonar as redes sociais, e quando abandonam, o tempo é tão precioso que não arriscam apostar em nada, terminando pela leitura limitada a livros tradicionalmente bons.
É lamentável saber que um vídeo num vlog adolescente qualquer do YouTube dão aos autores um alcance gigantesco em comparação com resenhas interessantíssimas escritas em blogs e sites, como as suas, como as do Pablo Villaça e muitos outros.
Mas não culpo a sociedade por tudo isso. É tudo muito difícil de lidar. Acho que o desafio do escritor é ter coragem e paciência para meter a cara e conquistar seu espaço através da mídia e das indicações dos leitores que conquistou. É muito difícil alcançar outros estados, é muito difícil ter seu texto publicado em algum lugar sem que seja feito um pagamento.
Você foi considerado um dos novos talentos da literatura brasileira pela editora Novo Século. Que saldo Mundo Cão deixou?
Consegui vender mais de 1000 exemplares de mundo cão, e as críticas foram bastante positivas. Acho esse número espetacular para uma primeira obra. Mundo Cão foi a primeira coisa que escrevi na vida, fora as redações do colégio. Felizmente, as críticas foram bastante satisfatórias, e tenho muito orgulho de tê-lo escrito.
Por conta da distribuição da editora Novo Século em férias, ainda recebo, esporadicamente, mensagens de leitores de diversos estados do Brasil, pessoas com idade entre 15-60 anos comentando sobre a obra, falando do choque e das emoções que lhes provoquei. Acho que esse saldo é o que realmente importa. Ser lido é o maior lucro de todo escritor.
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