Nascido em 1860, no sul da Rússia, Anton Tchekhov foi um dos responsáveis por abrir portas para a dramaturgia e literatura russa contemporânea. Escritor da prosa curta, também foi um dos autores que fomentou reflexões sobre o conto no século XX, auxiliando a alçá-lo como um gênero de destaque.
Parcela da inovação que Tchekhov propõe em sua produção literária parte do próprio contexto social, anterior ao texto. Conforme explica Rubens Figueiredo no prefácio da coletânea O assassinato e outros contos, lançado em 2011 pela Cosac Naify, “no ambiente intelectual russo, o debate de ideias só parecia fazer sentido quando tomava formas extremadas”.
Como amplamente discutido nos textos sobre A morte de Ivan Ilitch e Memórias do Subsolo, a Rússia passava por diversos confrontos ideológicos entre os que viam o influxo de ideias modernas, vindas principalmente da Europa, como algo positivo e os que enxergavam como algo negativo, corruptor da alma russa. Ao se produzir dentro desse contexto, Tchekhov escrevia textos propositalmente ambíguos. Como explica Figueiredo, “os leitores russos se haviam acostumado a tomar os escritores como campeões de credos políticos e religiosos, mas, no caso de Tchekhov, esbarravam em textos obstinadamente inconclusivos”. Dessa forma, “Tchekhov fez da indiferença um método crítico, uma estratégia literária para nos pôr em contato com as coisas tais como são”.
Além de não tomar partidos, procurando retratar a realidade da melhor maneira possível, Anton tentava emular a realidade também na forma proposta dos seus contos. Em primeiro lugar, começava a narrativa no meio dos acontecimentos e terminava sem nenhum desfecho, com uma longa suspensão a ser preenchida, própria do fluxo natural da vida. O desenrolar dos contos também “não dá sinal de ter um propósito estabelecido de antemão”, comenta Rubens Figueiredo. “A rigor, muitas vezes mal existe um argumento, entendido como uma sequência causal clara. O acaso interfere livremente no enredo. Coisas irrelevantes e corriqueiras tomam a frente das histórias para, em seguida, deixá-las em suspenso”, comenta o tradutor.
Seguindo uma linha cronológica, seus primeiros trabalhos tinham um teor humorístico muito peculiar, pairando entre o engraçado e o triste. Segundo Elena Vássina, em um dossiê da Revista Cult sobre literatura russa, “o tema dominante desta primeira fase da obra literária de Tchekhov poderia ser definido como a ridicularização do que se considera ‘normal’, ou seja, daquele ‘bom senso’ vulgar e mercantil que rege e reina na vida corriqueira”.
O conto “Os mujiques” faz parte da última fase da obra de Tchekhov, quando o teor humorístico quase desaparece. A partir de 1888, depois de receber o prêmio Púchkin pela Academia de Ciências da Rússia, “seu talento amadurecido se concentra cada vez mais em recriação de sutilezas da interioridade “fluida e contraditória” do ser humano”, afima Elena Vássina.
O desenrolar dos contos também ‘não dá sinal de ter um propósito estabelecido de antemão’, comenta Rubens Figueirado.
A narrativa trata do cotidiano de uma família de mujiques, camponeses russos libertos da servidão, que acolhe um parente doente, que retorna de Moscou com sua mulher e filha, e fica na isbá – construção típica do campesinato russo, feita com troncos – para ser sustentando pela família pobre.
Nessa história, o primeiro ponto que se destaca é a humanização da figura do mujique. No confronto entre as duas visões ideológicas, os que entendiam que a Rússia deveria valorizar a essência de seu povo colocavam o camponês em um espaço idealizado, como uma figura pura que representaria o espirito russo. Rubens Figueiredo usa Tolstói como exemplo: “Tolstói, que preconizava a renovação da Rússia à imagem de uma classe camponesa idealizada, classificou o conto de ‘um pecado contra o povo russo’”.
O que Tchekhov faz nesse conto não é poetizar a condição dos mujiques, mas transpor a vida em família dos camponeses em uma realidade crua, apresentando as falhas que as teorias russófilas apresentavam. É possível perceber essa humanização logo no começo do conto quando, ao chegar na casa, o protagonista se depara com essa cena: “Nikolai chegou de noite à sua aldeia, Jukovo. Nas recordações de infância, seu ninho natal parecia radiante, acolhedor, confortável, mas agora, ao entrar na isbá, ele até se assustou: como era escura, apertada e suja. A esposa Olga e a filha Sacha, que o acompanhavam, encararam com espanto a estufa enorme e desmazelada, que ocupava quase metade da isbá, escurecida pela fuligem e pelas moscas”.
Na descrição da rotina da família, a crueza da descrição passa a permear a rotina da casa: “O chá tinha cheiro de peixe, o açúcar estava roído e cinzento, sobre o pão e a louça circulavam baratas; beber aquilo era repugnante e a conversa também era repugnante – só falavam de miséria e de doença”.
Por fim, outro ponto a ser destacado na sua produção que dialoga com a tradição russa é a indiferença em relação à religião. Enquanto escritores como Dostoiévski e Tolstói valorizavam algum tipo de doutrina, fosse o catolicismo ou uma mística vaga, “Nesse conto”, afirma Rubens Figueiredo, “constatamos como, para Tchekhov, a religião era moralmente indiferente. Ou seja, a crença, seus conceitos e seus símbolos e rituais eram ineficazes para deter a crueldade e o egoísmo, mas tampouco constituíam necessariamente suas causas”. Em “Os Mujiques”, não só era indiferente como também distante. Tchekhov escreve: “Todo dia, Olga lia os Evangelhos, lia em voz alta, como um sacristão, não entendia grande coisa, mas as palavras sagradas a comoviam até as lágrimas e ela pronunciava certas expressões arcaicas com um enlevo no coração”.