O rock, como sabemos, é mais que um estilo musical, mas uma narrativa própria, naturalmente sedutora. Ele nos atrai não apenas pelas canções, mas pelo estilo de vida que ecoa: esperamos dos astros do rock uma vida repleta de emoções, de tensões sexuais, de experimentações lisérgicas, de prazeres mundanos, de iconoclastia como meta última. Essa história – que se repete nas jornadas de quase todas as estrelas da música, com algumas variações e raras exceções – é simplesmente irresistível. Por isso, um livro contando a ascensão e queda de uma superbanda de soft rock, aos moldes do Fleetwood Mac, não tem muito como dar errado.
Mas isso não desmerece a obra Daisy Jones and The Six: Uma História de Amor e Música, livro da escritora Taylor Jenkins Reid, que conta a história da fictícia banda homônima. De leitura fluida – em parte pelo seu formato, inteiro estruturado em forma de uma entrevista concedida a um jornalista –, é um livro tão envolvente que pode perfeitamente ser lido em uma sentada, como diz a frase da atriz Reese Whiterspoon logo na capa (uma curiosidade: Daisy Jones and The Six está sendo produzido pela própria Reese como uma série para o canal de streaming da Amazon). Ainda que não seja exatamente original (o formato é exatamente o mesmo do clássico Mate-me por favor, de Legs McNeil e Gillian McCain, que conta a gênese do punk e de muitas bandas e artistas seminais na história da música), o estilo da obra permite uma entrada fácil na trama e faz com o leitor se conecte prontamente com os personagens.
Em Daisy Jones & The Six, não há exatamente um narrador, pois o livro opera por meio de uma colagem de falas diversas, em que os membros da banda e seus agregados (produtores, familiares, etc.) dão depoimentos nos quais lembram dos áureos momentos. A história relata a formação de uma banda chamada The Dunn Brothers, criada por dois irmãos, Billy e Graham, cujo caminho cruza, em certo momento, com o de uma cantora obscura de nome Daisy Jones. A trama, portanto, é marcada pelos filtros da memória, sendo que cada um lembra dos fatos sob uma perspectiva própria. Esta é a grande sacada de Taylor Jenkins Reid: organizar um relato múltiplo e polifônico, em que as falas das personagens se contradizem a todo instante, cabendo ao leitor tirar suas próprias conclusões sobre o que é contado (o que me remete à genialidade de Kurt Vonnegut na abertura de Matadouro Cinco, outro livro marcado sob a égide da lembrança: “tudo isto aconteceu, mais ou menos”. E é mais ou menos assim que a memória opera, no fim das contas).
Esta é a grande sacada de Taylor Jenkins Reid: organizar um relato múltiplo e polifônico, em que as falas das personagens se contradizem a todo instante, cabendo ao leitor tirar suas próprias conclusões sobre o que é contado.
A estrutura, em si, é bastante envolvente, mas o grande trunfo do livro está justamente na riqueza da construção das personagens. Os músicos do The Six, obviamente, são importantes à trama, mas brilham sobretudo três sujeitos criados por Taylor. A começar, os dois protagonistas: Billy Dunne, o guitarrista/ vocalista da banda, e Daisy Jones, a cantora. Ambos são representados de forma tridimensional, a partir de recursos que nos fazem imaginá-los minuciosamente, desde os detalhes de suas personalidades até seus trejeitos físicos. Billy, o “dono” da banda, é um homem centralizador, marcado pela dualidade: o de ser pai de família e o de levar uma vida louca na estrada com uma banda que aos poucos se torna a maior do mundo. Billy é repleto de culpa e vive à beira da tensão criada por suas escolhas. Além disso, é um dependente químico em tratamento permanente (preste atenção especialmente em uma das cenas finais do livro, envolvendo Billy e Daisy, em que esse tema é trazido).
A segunda protagonista é, claro, a estrela Daisy Jones, uma roqueira de beleza irresistível e de alma obscura, capaz de seduzir todos em sua volta, como uma espécie de Medusa amaldiçoada. Daisy tem traços de Stevie Nicks, uma das vocalistas do Fleetwood Mac, e de Marianne Faithfull, ambas cantoras que estabeleceram uma espécie de culto involuntário em torno de suas figuras. Daisy nos atrai desde as primeiras páginas, pois nos faz amá-la e detestá-la na mesma medida. Linda e talentosa, Daisy é profundamente solitária e, como um clichê ambulante, só encontra algum conforto nas drogas (não se engane: a complexa personagem de Daisy vai muito além de sua dependência química). Boa parte do livro gira em torno da tensão latente entre Billy e Daisy, que vai muito além do sexual, e beira questões de gênero, de concepção artística e de visão de mundo. O conflito insolúvel que se estabelece entre eles é, de fato, o verdadeiro centro da obra.
E por fim, há uma terceira personagem marcante no livro, sobre a qual não pretendo me estender: Camila, a companheira de Billy Dunne, é uma das mulheres mais surpreendentes criadas em obras recentes. Enigmática como Daisy, Camila é perpassada por uma sabedoria invejável pouco observada tanto na literatura quanto na vida real. Em cada momento em que aparece, é como se estivéssemos diante de um oráculo que merece ser ouvido com atenção. Em alguma medida, ela é o fio condutor da trama e que faz toda a história acontecer (ou não).
Deliciosamente leve e denso, Daisy Jones & The Six só causa uma decepção: o fato de que, por ser uma obra ficcional, não conseguimos ouvir as músicas da banda ou ver a capa do disco, magistralmente descrita (por sorte, em breve poderemos ver a série). Um livro despretensioso, com alguns plot twists, perfeito para um mergulho rápido no mundo do rock, cujo fascínio nunca morre.
DAISY JONES AND THE SIX: UMA HISTÓRIA DE AMOR E MÚSICA | Taylor Jenkins Reid
Editora: Paralela;
Tradução: Alexandre Boide;
Tamanho: 244 págs.;
Lançamento: Junho, 2019.
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