Poucos lugares são tão associados à intranquilidade quanto a Europa. Não é impreciso afirmar que, frente ao Brexit, a ascensão da extrema-direita e as crises imigratórias, para ficar apenas nas manchetes mais recentes, a Europa está à deriva neste momento. Sem dúvida, o futuro parece turbulento, mas, como afirma o dito popular, para entendê-lo temos, primeiro, que olhar para o passado.
É dessa maneira que Daqui Não Saio, do romancista italiano Marco Balzano (2020, tradução de Ivone Benedetti) publicado pela Bertrand Brasil, torna-se uma obra tão aclamada. Estamos em Curon, uma pequena vila em Tirol do Sul, no limiar que divide a região em partes alemã e italiana. O território é a parte sul da área que foi dada à Itália através do Tratado de Saint-Germain-en-Laye, um acordo de paz internacional firmado em 1919, embora a área pouco tivesse a ver com a Itália, cultural e historicamente.
Daqui Não Saio, que parte de um acontecimento real (importante frisar), segue a história de Trina, uma professora que vive em uma vila ameaçada de diferentes maneiras – inundações, desintegração, fascismo. A ditadura, em especial, impõe o monolinguismo, ameaçando a identidade da comunidade, enquanto o fantasma da construção de uma barragem coloca em xeque a sobrevivência da vila.
Um passado tão presente
Daqui Não Saio é composto e apresentado ao leitor através de uma sequência de cartas que Trina escreve à filha Màrica, desaparecida sem deixar vestígios. O relato da protagonista é doloroso: a tentativa de italianizar a cidade com a “importação” de italianos semianalfabetos da Sicília, perseguição a professores, placas avisando a proibição de se falar alemão.
O romance de escritor é direto, sem excessos, o que fortalece a imagem de um espelho antigo da realidade atual.
O cenário mudaria, em tese, em 1939, quando um acordo entre Mussolini e Hitler permite com que os cidadãos de origem alemã migrem para a Alemanha. Uma minoria decide ficar, incluindo Trina e seu marido, Erich. Para eles, Hitler é a saída para a permanência na terra que sabem e sentem ser sua, ainda que para a protagonista insistir em estar naquele pedaço de chão tenha relação muito maior com a esperança de que a filha retorne.
Trina é concebida pelas palavras de Balzano como a resistência subversiva. O romance de escritor é direto, sem excessos, o que fortalece a imagem de um espelho antigo da realidade atual. A ascensão de Mussolini, Hitler sendo visto como um salvador e (falso) profeta, a ganância corporativa diante de um grupo de moradores indigentes, quase todos analfabetos, as mulheres como ponta de lança de uma resistência. Nada mais atual que este recorte sobre 80 anos atrás.
É interessante notar a maneira como o autor engendra a história. Ainda que Trina nos pareça a protagonista (e o seja em diversas camadas), é Curon a personagem central da trama. Balzano, que esteve na cidade no verão de 2014, tem por interesse contar a história desta vila que tanto impressiona, e faz isso recorrendo a uma maneira inteligente, personificando tudo que ela representa em Trina, dando um aspecto muito pessoal ao enredo.
Balzano consegue, por fim, criar uma obra que reflete temas do nosso tempo sem pieguismo. Que, como toda grande literatura, nos lega um sem par de reflexões. Leitura para a quarentena ou para a pós-quarentena, pouco importa, pois, sem dúvida, uma leitura para qualquer ocasião.
DAQUI NÃO SAIO | Marco Balzano
Editora: Bertrand Brasil;
Tradução: Ivone Benedetti;
Tamanho: 210 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2020.