“Sou uma esfinge sem segredo”, disse certa vez Rubem Braga (1913 – 1990) a Clarice Lispector (1920 – 1977). O cronista capixaba era um sujeito calado, quase tímido, e é possível que toda essa sua clausura fosse, por si só, reveladora. Mas, quem sabe, também seja próprio de todos os cronistas uma abertura que os impeça de segredar qualquer coisa. Ao menos essa é a impressão que deixa A Máquina de Caminhar (Record, 192 págs.), a última incursão de Cristovão Tezza pela crônica.
O livro encerra o ciclo dos textos escritos para a Gazeta do Povo entre 2008 e 2014 e que foi iniciado por Um Operário de Férias (2013). O fim do Tezza-cronista foi decretado pelo próprio escritor. “Sofri uma crise com o gênero, com o formato da crônica, o trabalho semanal e regular, que passou a vampiririzar meu olhar literário”, disse em entrevista exclusiva à Escotilha (leia abaixo, e na íntegra, a conversa com o escritor). No final, é possível entender melhor a exaustão do compromisso semanal.
Ainda que jamais tenha se visto como um cronista profissional – como Sérgio Porto (1923 – 1968), Braga ou João do Rio (1881 – 1921) –, Tezza, durante a sua caminhada pelo jornal, foi um grande arquiteto da palavra. Se lhe faltava assunto, recorria ao método Fellini e escrevia sobre não conseguir escrever. Até os torrents caíram na sua rede, a mesma que não poupou o futebol, o xadrez, a política e o “pensamento chapado” (no sentido de padronizado, vamos deixar claro!).
No ensaio que fecha A Máquina de Caminhar, Tezza dispara: “nenhum texto é inocente”. E, se pensarmos que a “crônica é quase industrial”, como uma matéria de jornal, é praticamente impossível não declarar o autor culpado. Mas culpado de quê?
Quem lê a obra literária de Tezza não imagina o cronista que perdemos ao vê-lo despedir-se da ‘maldita conversa pública em voz alta’.
Espelho em retrocesso
Os 2,8 mil caracteres que lhe eram dados todas as terças-feiras são verdadeiros passeios pela mente “criminosa” do autor. Mais interessante que comparar o Tezza-romancista ao cronista, é perceber a observação arguta do mundo, como em “O Estado e o cidadão” – um comentário delicioso aos nossos dias, uma espécie de espelho em retrocesso. A crônica “O Brasileiro” é um exercício de autocrítica de um povo inteiro, um olhar para dentro – como o personagem de Guimarães Rosa que conseguia ver dentro do próprio corpo –, enquanto “Prisões suecas” é uma indigesta constatação.
Quem lê a obra literária de Tezza, seja O Filho Eterno (2007), O Espírito da Prosa (2014) ou O Terrorista Lírico (1980), não imagina o cronista que perdemos ao vê-lo despedir-se da “maldita conversa pública em voz alta”, como o próprio autor se refere ao gênero. Enfim, partidas e chegadas fazem parte da literatura também e não há o que lamentar. O papel – ou os bits – eternizam o que foi feito. E está tudo lá.
Leia na íntegra a entrevista com Cristovão Tezza
Escotilha: Você disse que abandonou a crônica por uma crise criativa. Isso nunca lhe ocorreu com os romances?
Cristovão Tezza: Na verdade, sofri uma crise com o gênero, com o formato da crônica, o trabalho semanal e regular, que passou a vampiririzar meu olhar literário. Era o momento de parar.
A crônica sempre foi uma espécie de filha bastarda do conto. Após mais de seis anos se dedicando ao gênero, com que olhos você o vê?
Para mim, a crônica não é um gênero que vem da literatura, e vejo nela pouco parentesco com o conto. A crônica é um formato predominantemente jornalístico, que nasce da observação objetiva da notícia, transformada pelo olhar subjetivo de pendor mais ou menos literário. É um gênero que tem muito a ver com traços da cultura brasileira.
Você abre um dos textos afirmando que “o escritor sempre tem mais talento que liberdade”. Isso continua valendo em uma época em que publicar um livro se tornou tão fácil?
O talento não é uma carta branca que o destino nos dá, com a qual você possa fazer o que quiser. É apenas um instinto que nos permite passar a vida cavando a mesma mina. A facilidade ou não de publicar um livro é, de fato, uma questão extraliterária, que depende de circunstâncias outras.
Certa vez você comentou que sempre que escrevia a primeira linha de um romance ia até o fim (e que teria desistido apenas uma vez). Como é o processo criativo da crônica?
Para mim, o processo de escrever um romance começa bem antes – dois, três, cinco anos – de escrever a primeira. O que eu disse foi que, ao chegar à linguagem da primeira frase, o livro deslancha e eu vou até o fim. A crônica é um processo completamente diferente, quase industrial de escrever. Tenho apenas duas ou três ideias para romances ao longo de cinco ou dez anos. Já o cronista tem de ter uma ideia diferente toda semana. É uma coisa meio de estalo. O Lula vai ser preso? Pronto: a pergunta já é uma crônica. Saí sem guarda-chuva e caiu um toró? Outra crônica. Ninguém mais usa ficha de telefone? Vai uma crônica. Subiu o preço do tomate? Mais uma.
O talento não é uma carta branca que o destino nos dá, com a qual você possa fazer o que quiser. É apenas um instinto que nos permite passar a vida cavando a mesma mina.
Em “A Ciência do Futuro”, de 2013, você se pergunta como será o Brasil daqui cem anos. Passados três anos, o que você diz sobre a atual situação do país?
Muito ruim. Vou ficar apenas em dois índices: um dos maiores índices de homicídios do mundo; e um dos piores índices educacionais do mundo, particularmente no ensino básico e médio, o que é especialmente trágico. E, sendo realista, vai piorar.
Na crônica “Loucura e método”, você cita Ballard, mas a visão que me vem com maior clareza é filme Violência Gratuita, do Michael Haneke. Qual o papel da violência na arte?
A violência é parte integrante da vida – o problema é quando ela não é mediada pelo processo civilizador. A arte muitas vezes trabalha exatamente no fio da navalha desta tensão.
O futebol é tema – ou está inserido – em alguns dos textos. O escritor chileno Alejandro Zambra me contou, em entrevista, que todo escritor gostaria mesmo era de ser jogador de futebol. Por que o futebol e a literatura parecem quase nunca se cruzar?
No Brasil, isto já não é verdade. Como exemplo recente, basta lembrar o ótimo romance O Drible, de Sérgio Rodrigues. O futebol tem aparecido bastante na literatura brasileira. Mas é um tema literário como os outros, e, naturalmente, só tem sentido como uma das expressões da vida social e da cultura.
Você costuma dizer que o bom romance é aquele que acompanha o leitor. E como é a boa crônica?
Eu disse isso? Tenho de me reler! Não sei bem o que quer dizer “acompanha o leitor”. A expressão é muito vaga. Sobre a boa crônica, não há fórmula – cada cronista tem um estilo, uma marca, uma pegada especial. E o leitor acaba tendo suas preferências.
A crônica é, quase sempre, um tratamento literário do real. Seu romance O Filho Eterno, de certa forma, também é. Existe alguma relação entre seu trabalho como cronista e a escrita d‘O Filho Eterno?
Absolutamente nenhuma. Nada.
Falando um pouco da sua trajetória. Em que momento o garoto que foi reprovado em língua portuguesa na escola se tornou escritor?
Acho que no ano seguinte, quando fiz o antigo quinto ano primário, reservado aos reprovados que queriam tentar o exame de admissão ao ginásio novamente. Foi a época das primeiras leituras de mais fôlego – e acho que ali já nasceu o desejo de ser escritor.
A crônica é um formato predominantemente jornalístico, que nasce da observação objetiva da notícia, transformada pelo olhar subjetivo de pendor mais ou menos literário.
Você tem uma ligação muito forte com os autores russos. Como a literatura da terra de Tolstói está presente na sua produção?
No século 19, os russos marcaram profundamente uma boa parte da constituição literária do século 20. Eles são inescapáveis. Mas, para quem escreve, as influências são geralmente difusas, e vão mudando de tempos em tempos, a cada nova descoberta.
Em O Trapo foi a primeira vez que Curitiba apareceu geograficamente na sua obra. Por que antes a cidade estava oculta?
Não sei – escrever nunca é uma atividade inteiramente objetiva e racional. Fui amadurecendo por instinto, muito mais aos trancos do que seguindo uma régua de princípios.
Como Borges, você contou sua vida em um ensaio autobiográfico (O Espírito da Prosa). Qual a diferença entre o cidadão comum e o homem das letras?
Em princípio, nenhuma. Pago contas de luz, às vezes fico gripado, gosto de cerveja, reclamo do governo. E escrevo uns livros.