O ano de 1984 realmente parece carregar uma forte conexão com o místico e o trágico. Desde o clássico orwelliano, passando pela – até certo ponto – homônima trilogia de Haruki Murakami até Galveias (Companhia das Letras, 266 págs.), romance do escritor português José Luís Peixoto, lançado no Brasil no fim do ano passado.
O ponto central do livro é a queda de um objeto misterioso sobre uma pequena cidade, no caso a Galveias natal de Peixoto. Após o incidente, a rotina do povoado se transforma em uma experiência turva. Ainda que “a coisa sem nome”, como o próprio autor se refere, não seja diretamente o elemento causador de tantos distúrbios, a população acaba envolta em uma espécie de medo – que, pouco a pouco, toma conta de gente comum e sem muita pretensão. “O medo nunca tem um rosto demasiado nítido”, explicou o escritor em entrevista exclusiva para A Escotilha (leia abaixo a conversa na íntegra).
Galveias é repleto de estranhezas. Uma prostituta que é amiga de uma freira ou um pai que despreza o filho pelo nome que deu à criança. Ao mesmo tempo, o romance é um acerto de contas de Peixoto com seu próprio passado. É como se o leitor espionasse os personagens e os pegasse em flagrante. Mas não existe delito. Os mil habitantes que sobraram na cidade, que fica no interior de Portugal, não se furtam em preencher suas vidas com o vazio que lhes resta. É como Oscar Wilde disse: viver é muito raro, já que a maioria das pessoas apenas existe.
Movimento
E o grande empenho dos moradores de Galveias é justamente esse: fugir da existência pura e simples. Por isso é preciso o conflito. Como se o caráter caótico do ambiente fosse necessário para que a cidade entrasse em movimento, para que as engrenagens divinas voltassem a funcionar. É a desordem que colocasse as coisas no lugar.
O rural, algo tão presente na literatura portuguesa contemporânea, se coloca em choque. A tradição é ameaçada pelos mais jovens que, assim como José Luís Peixoto, ansiavam por algo novo, alguma coisa que quebrasse os laços eternos com os antepassados. A despeito das rupturas, Galveias possui uma ponte interessante – e firme – entre o real e o abstrato, e entre o sentimento de se pertencer a um lugar chamado lar e também à vontade de se navegar – afinal, navegar é preciso.
Leia a entrevista exclusiva com José Luís Peixoto
Escotilha » Em Galveias, assim como em Morreste-me, o senhor usa da memória pessoal e afetiva para criar o texto. Até que ponto o passado – real e pessoal – é um elemento necessário e importante na sua literatura?
José Luís Peixoto » Sem passado não é possível escrever. É de Aristóteles a ideia que saber é lembrar. E, claro, para escrever é necessário saber ou acreditar que se sabe, o que é a mesma coisa. Aquilo que escrevo aceita estes pressupostos e, dessa forma, procura-os deliberadamente. Muitas vezes, as páginas que escrevo nascem de uma vontade de confronto com a experiência, com aquilo que sei, com aquilo que sou.
Para escrever é necessário saber ou acreditar que se sabe, o que é a mesma coisa.
O ponto de partida de Galveias é uma “coisa sem nome” que atinge a cidade e a impregna do cheiro de enxofre. A ação acontece em 1984. Existe uma relação proposital com a obra de Orwell?
Não. Neste caso, o ano de 1984 foi escolhido principalmente pelo momento que ocupou na história recente de Portugal, dez anos após o final da ditadura, dois anos antes da adesão à União Europeia. Esse período pareceu-me o mais adequado para a descrição que queria fazer daquela região. Além disso, há também o aspecto da minha memória específica desses anos. De novo, a memória, como já falamos.
Essa “coisa sem nome” assume muitas metáforas, mas é também uma coisa física e que afeta a vida dos galveenses. É como se a cidade fosse alvo de uma praga bíblica. Essa coisa é o único elemento do livro que não recebe nome. Por quê?
Porque o medo não é concreto, o medo nunca tem um rosto demasiado nítido. Preenchemos as indefinições do medo com aquilo que mais nos intimida.
O livro é recheado de personagens conflitantes – uma prostituta amiga de uma freira, um pai que não gosta do nome do filho, uma namorada que finge zangar-se com o namorado. A impressão que temos é que os personagens se sentem, usando uma expressão sua, “brasa da véspera”. Esse sentimento de dúvida, incerteza, é a essência da natureza humana?
Um dos aspectos importantes do livro é o modo como tenta descrever a vida numa pequena comunidade. Ao fazê-lo, toma em consideração duas dimensões de cada personagem: a social e a íntima. Muitas vezes, aquilo que a comunidade sabe sobre determinada personagem é muito contrastante com aquilo que a personagem é na sua esfera mais pessoal.
Em Galveias praticamente não há menção sobre a relação dos personagens com a literatura. A cidade era realmente sem livros? Como nasceu seu desejo de ler e, claro, de tornar-se escritor?
As personagens e o enredo não pretendem ser um retrato da minha vida e, por isso, nas personagens retratadas, esse não é um tema muito presente. Ainda assim, enquanto crescia, Galveias não era um lugar onde houvesse muito acesso à leitura. Pela minha parte, tinha alguns livros em casa e, para além disso, foi muito importante o acesso que tive à leitura através da biblioteca itinerante: um carro que chegava com livros uma vez por mês, ficava estacionado na praça principal.
A maioria de seus livros são centrados em questões portuguesas, mas, ainda assim, falam a qualquer pessoa de qualquer lugar no mundo. Essa identificação do leitor com a obra é uma preocupação sua no momento em que escreve?
Creio que essa é a preocupação de qualquer obra literária. A literatura aspira a essa capacidade de atravessar o espaço e o tempo. O centro daquilo que interessa à literatura é a natureza humana, algo essencial, que não muda em função do espaço e do tempo.
Uma vez o senhor disse, sobre sua viagem à Coreia do Norte, que “viajar é interpretar”. Como o senhor espera que os leitores interpretem a viagem pessoal que o livro faz a Galveias?
Não é da minha competência definir aquilo que os leitores poderão interpretar. Pela minha parte, tentei construir um objeto coerente, que pudesse sugerir bastante; mas aquilo que os leitores encontrarão dependerá deles e do próprio texto, que me transcende, que é maior do que eu em certos aspetos.
O centro daquilo que interessa à literatura é a natureza humana, algo essencial, que não muda em função do espaço e do tempo.
Em vários momentos de Galveias é possível notar uma nostalgia, como se ouvíssemos um fado. De onde vem essa melancolia tão presente no livro?
Suponho que possa estar ligada ao fato de se descrever um tempo que vivi. Talvez em alguns momentos esse fato transpareça no texto. Em 1984, eu tinha dez anos e, apesar de criança, tenho bastantes lembranças desse tempo.
A literatura portuguesa contemporânea tem nomes muito significativas, rol ao qual o senhor pertence – ao lado de Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, Inês Pedrosa, etc. Na sua opinião, essa “geração de vivos”, como se refere Gonçalo, estabelece uma ruptura com os escritores de outros tempos ou existe ainda um pé na tradição?
Sinto que existe uma continuidade que, ainda assim, reflete com muita clareza algumas diferenças significativas no que diz respeito ao tempo das gerações anteriores. Esta é uma geração que tem um acesso completamente diferente ao mundo, que vive em democracia e que tem de enfrentar desafios bastante próprios.
Apesar de muito próximas, as literaturas portuguesa e brasileira apontam para direções opostas. Enquanto a produção lusitana retrata o rural e o recôndito, o que é feito no Brasil é cada mais urbano. Ao que o senhor atribui essa diferença tão drástica de movimento?
Em Portugal, também existem muitos autores que retratam o urbano e, muitas vezes, procuram mesmo um certo universal, desprendido de relações geográficas. Ainda assim, é verdade que, em Portugal, desde há vários anos que existe uma dicotomia bem marcada entre uma prosa que assume como tema a ruralidade e outra que prefere o meio urbano. Sinto que essas opções têm a ver com a realidade do país, com aquilo que os escritores têm para dizer. No Brasil, parece-me que os temas urbanos parecem ser os mais escolhidos porque são esses que acabam por ter mais visibilidade. Sob o ponto de vista cultural e não só, o Brasil é um país fortemente centralizado em duas ou três cidades.