Em 2022, Juliana Dal Piva presenteou o Brasil com uma obra urgente. O Negócio do Jair é um livro reportagem que organiza e expõe o sistema de enriquecimento do político Jair Bolsonaro ao longo de mais de trinta anos, usando o desvio de salário dos funcionários e colocando toda a família no esquema.
Trata-se de uma obra que expressa a extrema coragem de uma jovem jornalista que, com apenas 36 anos, já figura entre os grandes nomes do jornalismo investigativo do país. Reconhecida pelos pares, a repórter Juliana Dal Piva, além de ser jornalista, tem mestrado pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPD) da Fundação Getúlio Vargas – formação que certamente impactou nas suas habilidades em encontrar e analisar documentos, que foram fundamentais na apuração sobre a família Bolsonaro.
Conversamos com Juliana Dal Piva, que atualmente trabalha no portal UOL, sobre seu livro e sobre questões referentes às suas práticas dentro do jornalismo investigativo, bem como sobre as dificuldades enfrentadas pelas mulheres neste tipo de trabalho.
Escotilha » Juliana, a leitura da sua obra é um belo testemunho de uma apuração que envolve tanto técnicas arrojadas de pesquisa e análise quanto um trabalho de “formiguinha”, como ir nos lugares onde as fontes estavam para tentar falar com elas. Qual foi a parte mais difícil na sua apuração desta longa reportagem? E como permanecer resiliente depois de ouvir tantos nãos?
Juliana Dal Piva » Acho que a parte mais difícil é a resiliência. Seguir persistindo e buscando caminhos quando todas as portas se fecham. Também o machismo de todo esse ambiente que esteve presente em todo o tempo. Confesso que, às vezes, fui motivada pela raiva que dá desse tanto de nãos e também do volume de problemas que estavam acontecendo no Brasil o tempo todo e que até impediam a gente de dar conta de todas as demandas. No tempo que eu cobri esse caso, eu nunca deixei de acompanhar outros temas no Brasil. Então, sinceramente, foi com terapia, apoio familiar e uma rede grande de amigos, além de muita força de vontade que eu nunca parei de trabalhar.
Em ambiente universitário, há muita discussão sobre uma suposta cisão entre teoria e prática, com uma acusação de que os cursos de graduação investiriam muito mais na reflexão sobre a prática jornalística do que no exercício dela. Como você pensa que isso se deu na sua experiência – o quanto os seus anos na UFSC a prepararam para o trabalho que você faz agora?
Acredito que meus anos na UFSC me prepararam bastante pra vida profissional. Na minha época, era um curso ainda muito voltado pro mercado de jornais/revistas impressos. Fiz muitas reportagens e até as minhas primeiras matérias investigativas no jornal laboratório do curso, um livro sobre trabalho escravo como TCC. Na UFSC, existia muita prática. A gente cobrava da faculdade mais disciplinas teóricas até. Mas acredito que cada um faz sua faculdade. Existia no curso de jornalismo da UFSC muito incentivo pra interação e estudo de disciplinas em outros cursos de outras áreas o que acho que foi fundamental pra mim.
“A parte mais difícil é a resiliência. Seguir persistindo e buscando caminhos quando todas as portas se fecham”.
Juliana Dal Piva
Como você acha que o fato de ser mulher impactou no processo de produção dessa reportagem? Você se sentiu mais vulnerável em algum momento?
O machismo ficou mais sem vergonha no governo Bolsonaro. Tanto os episódios de assédio como de pressões e ameaças a jornalistas mulheres se tornaram mais comuns. Infelizmente fui alvo de tudo isso junto com outras colegas. Acho que o último ano, depois da publicação do podcast, foi um pouco mais pesado e exigiu mais cuidados após a ameaça do advogado do Bolsonaro. Denunciá-lo tomou muito tempo da minha vida pessoal, mas segui trabalhando como achei que devia.

O trabalho que você faz no livro, sem dúvida, requer coragem em lidar com as consequências de noticiar crimes envolvendo pessoas importantes e mesmo perigosas. Inclusive, você menciona algumas ameaças explícitas e veladas durante o livro. Como você lidou (e ainda lida) com as decorrências do seu trabalho investigativo?
Tive que lidar como se lida com crimes. Fiz uma denúncia formal do caso ao poder Judiciário e estou buscando justiça. Espero encontrar. Também me cerquei de apoio junto à minha família e terapia.
Em relação às técnicas narrativas que você usa no seu livro reportagem, quais são as suas referências no que tange a jornalistas que escrevem livros? Você busca se espelhar em alguém?
Li e ouvi muita coisa que me inspirou. Sempre gostei do trabalho do Zuenir Ventura, em especial, da cobertura do assassinato do Chico Mendes. Mas também fiquei tocada pelo jeito de contar da Branca Vianna no podcast Praia dos Ossos e também trouxe referências da literatura. Gosto muito da escritora Elena Ferrante e da tetralogia napolitana. Talvez essas sejam as minhas principais referências pra encontrar o meu jeito próprio de contar a história que eu apurei e a que eu vivi.
O seu livro expõe o esquema concretizado pela família Bolsonaro na contratação de muitos funcionários fantasmas, a que eles tinham direito como parlamentares, mas que não trabalhavam de fato. Durante a leitura, tive em mente um questionamento constante sobre o quanto esses cargos de assessores podem ser supérfluos. Você tem alguma percepção sobre isso?
Sim, existe um problema grave sobre a definição de funções. Os parlamentares podem usar como quiserem e, tudo bem, muitos deles usam esses cargos corretamente pra representação de suas bases, mas essa ampla liberdade também permite essas distorções e a criação de esquemas de corrupção. Seria necessário ter mais claro quais são as funções.
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