Na semana de nossa comemoração de 4 anos, estreamos hoje uma série de textos em que convidamos escritoras e escritores brasileiros a compartilhar um pouco sobre sua relação com a literatura. Para este texto inaugural, a série “Na minha estante” tem o prazer de contar com a autora Julia Wähmann.
Carioca, Wähmann nasceu no ano da graça de 1982. Formada em design gráfico, estreou na literatura com André quer transar (Pipoca Press, 2015) e Diário de Moscou (Megamíni/7Letras, 2015). Já na Record, Julia publicou Cravos (2016) e Manual da demissão (2018).
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Com vocês, Julia Wähmann.
Julia Wähmann
Meu livro de cabeceira? Taí uma pergunta que deixa qualquer leitor angustiado, e que pode se tornar uma injustiça com tudo o que ficar de fora. Acho que meu livro de cabeceira foi mudando ao longo dos anos, e creio que ainda mudará, o que muito me entusiasma. Mas se tivesse que eleger apenas um, diria que Cem anos de solidão, do Gabriel Garcia Marquez (leia nosso texto sobre a obra-prima de Gabo), teve um grande papel na minha trajetória.
O exemplar que li é uma edição da Record, que traz a assinatura do meu pai na folha de rosto, datada dezembro de 1985 – eu tinha 3 anos, então e, muitos anos depois (estas são as três primeiras palavras do livro), devorei as páginas cheias de Aurelianos, Úrsulas, Arcádios. Meus pais são leitores assíduos, de quem herdei esse hábito, e já não me lembro exatamente como me decidi por esse título dentre os tantos da estante de casa. Sei que logo me encantei por Macondo – a cidade que 9 em cada 10 amigos indicava como habitat em seus perfis do Orkut – e pela atmosfera que me remeteu um pouco às leituras da infância, em que tudo tinha uma aura inventiva, mágica.
Cem anos de solidão destoava bastante do que eu estava acostumada a ler, sobretudo contos e crônicas realistas. Acho que foi o livro que me levou a outras possibilidades de leitura, que foi ao mesmo tempo um escape e um abrigo, e esse impacto teve um efeito bem duradouro. Creio que sua influência seja antes no engajamento como leitora que num estilo de escrever (nem me atreveria), o que de certa forma tem um impacto mais perene na minha relação com a literatura, em todos os aspectos.
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Não acho que deveria haver uma leitura obrigatória, acho inclusive que o método compulsório de leitura – e aqui eu penso em como ela é apresentada em grande parte das escolas – pode atrapalhar um pouco o caminho dos leitores.
Não acho que deveria haver uma leitura obrigatória, acho inclusive que o método compulsório de leitura pode atrapalhar um pouco o caminho dos leitores.
Lembro-me de uma série de livros que tinha de ler para as avaliações escolares que apenas não faziam sentido para mim, que me desagradavam de diversas maneiras. Essas leituras me deixaram a impressão de um terrível equívoco: se eu não entendia ou não encontrava formas de me relacionar com alguns dos cânones da literatura brasileira, então eu devia ter algum problema.
Acho que qualquer método impositivo, seja com livros, filmes, peças de teatro ou afins, pode ser nocivo, afinal você cria uma expectativa do outro, já estabelecendo uma importância para determinados objetos que, afinal, é bastante subjetiva. Acredito que esse lugar da obrigatoriedade pode ser muito desconfortável. Os livros ganham leitores por outros caminhos.
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Na minha cabeceira atual estão a Paloma Vidal, o Victor Heringer e o Leonardo Gandolfi.
A Paloma é uma escritora muito prolífica que passeia por prosa, poesia, dramaturgia e que leio desde 2011. O primeiro livro dela é de 2003, publicado pela 7Letras, e o ultimo é de 2018 e chama-se Menini, também pela 7Letras. Sempre gostei das doses de melancolia dos textos da Paloma, e de como à primeira vista parecem despidos de complicações. Ao mesmo tempo deixam resíduos que vão se revolvendo, gosto muito dessas leituras que te fazem voltar constantemente a elas.
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O Victor Heringer foi um escritor que nasceu em 1988, e esse dado biográfico sempre me surpreende porque seus dois romances – Glória, de 2013 (7Letras, relançado em 2018 pela Companhia das Letras), e O amor dos homens avulsos (Companhia das Letras, 2016) – parecem fruto de alguém com mais estrada, ao menos foi essa impressão que tive ao ler ambos, algo como “será possível que alguém jovem assim tenha essa compreensão das coisas?”. Heringer, que nos deixou precocemente em março de 2018, também foi poeta, e a poesia se mistura à sua prosa de uma maneira pouco usual. Seu humor também é incomum, como o “Informe meteorológico” que abre O amor, e que vejo como uma dessas quebras de protocolo que são como um sopro de ar.
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O Leonardo Gandolfi é poeta e tenho sempre preso à porta da geladeira um poema dele de 4 versos: “Cada um, Totó / tem o Kansas que merece / embora eu ache que / nem estejamos nele mais”. Este está em Escala Richter, publicado em 2015 pela 7Letras. Seu primeiro livro é de 2006, o último, a plaquete Minhas férias, de 2016. O Leonardo tem um repertório de referências que dificilmente pensaríamos encontrar na poesia, como o Mágico de Oz nos versos citados ou Os Trapalhões, que aparecem em outros poemas. Esse “lado B” da cultura pop acaba instaurando um certo ceticismo, como se afirmando o tempo todo a impotência da poesia. Como resultado, ele tece versos de muito humor e de beleza nada óbvia, como as que Paloma e Victor também criam.