Vamos imaginar um grande livro no qual os gêneros conversam a todo parágrafo: saltando da ficção para um roteiro de cinema ou uma biografia, acena para microcontos e relatos de viagem, pula em um sarau, quase explode em uma discussão sobre política, depois versa por temas nem sempre discutidos por um interlocutor.
Esse livro existe – foi o terceiro capítulo do festival literário Litercultura, que aconteceu de 28 a 30 de agosto no centro histórico de Curitiba. De leitura gratuita e coletiva, permite que o público molde seu repertório cultural na soma entre a ampla programação desta terceira edição com o repertório individual, ou como José Castello expressou no sábado, “leio com o que tenho dentro de mim”.
Já comentamos das apostas altas do festival antes dele começar, e o pluralismo de sua terceira edição consecutiva mostra o sucesso da aposta. No domingo anterior ao seu início, 23 de agosto, o festival promoveu uma sessão de cinema com bate-papo sobre o filme O Passado, adaptação de Hector Babenco para o livro homônimo de Alan Pauls, responsável pela abertura.
O Litercultura proporcionou o suficiente para ambas possibilidades e além, e deixa na mão de quem o frequenta a vez de apostar.
Naturalmente o filme foi tema da conversa de Pauls, que disse que se tivesse dirigido ‘la película’ teria sido muito pior. Ele gosta do filme, embora não esconda um olhar crítico, e dirigir uma transposição das páginas à tela exige um distanciamento que ele diz não ter. O argentino agiu como muitos dos autores convidados fizeram em suas mesas: em tom de conversa, fez rir sem intenção enquanto contava a sua ótica de um trabalho, a qual revelou com transparência e permitiu compreensão mesmo para quem não tenha a obra-tema da sessão no próprio repertório.
Outros agiram de forma diferente. Um debate vulcânico abriu a programação principal do terceiro dia, com Luiz Felipe Pondé praticamente berrando enquanto seu colega Christian Ingo Lenz Dunker argumentava em um tom de voz mais manso, mas não menos firme. A discussão deles era e foi sobre posicionamento político, mas a sociedade e a economia não foram poupadas de críticas em meio ao tiroteio verbal e a acuada defesa de Pondé e Dunker.
É um contraste fortíssimo com a calma na mesa das historiadoras Heloisa Starling e Lilia Schwarcz, autoras do volumoso Brasil: uma biografia, livro cuja intenção é mostrar o Brasil como um personagem contraditório com “momentos gloriosos” (fala de Starling) e quedas, a exemplo de todos nós. É uma viagem na formação do país, a exemplo do que fazemos ao ler uma obra ficcional com os antecedentes de um personagem.
Ao oferecer tais mesas, é como se o festival mostrasse mais de uma forma de conhecer e avaliar o que se conhece: pela forma bruta do debate entre Pondé e Dunker, como um livro que nos força a tomar uma posição; ou pela conversa entre Schwarcz e Starling, que nos transmite quase a mesma ideia (entre outras) de maneira menos agressiva e mais reflexiva, como uma ficção focada em um indivíduo em busca de si e, direta ou indiretamente, seu espaço no mundo. O Litercultura proporcionou o suficiente para ambas possibilidades e além, e deixa na mão de quem o frequenta a vez de apostar.
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