À medida que os debates sobre as pautas sociais contemporâneas avançam, também aumentam as discussões sobre temas como machismo, homofobia, racismo e transfobia na literatura e nas outras artes. Atualmente, começa-se também a discutir no Brasil o papel do nosso legado colonial na produção cultural nacional. Neste contexto, é importante perguntarmos: pode haver literatura pós-colonial no Brasil?
Para isso, é necessário pensarmos no status dos países latino-americanos, e do Brasil em particular, enquanto nações previamente colonizadas. Conforme alerta a pesquisadora Letícia Cesarino em seu artigo “Brazilian postcoloniality and South-South cooperation: a view from anthropology” (2012), “não é comum encontrar o termo pós-colonial associado à América Latina, tanto em círculos críticos como leigos, em especial em relação ao Brasil”, principalmente devido à relação dos chamados “estudos pós-coloniais” com os círculos críticos de língua inglesa que estabeleceram esse campo acadêmico, pois tratam-se de teóricos e correntes de pensamento distantes da academia latino-americana.
Nos moldes tradicionais dos estudos pós-coloniais, o foco principal da produção acadêmica internacional tem se direcionado a nações como a Índia, em que as marcas de um passado colonial relativamente recente ainda estão fortemente presentes na literatura de autores como Salman Rushdie. No caso do Brasil, cuja independência da metrópole se deu há mais tempo, é preciso olharmos para o caso particular da nossa modernidade para identificarmos a existência (ou não) desses traços específicos da literatura pós-colonial.
O vira-latismo e os “Dois Brasis”
Desde sua independência, em 1822, as elites intelectuais e políticas do Brasil têm enfrentado o desafio de construir a identidade de uma nação-estado. Foi o início da República em 1889 que trouxe o gênero dos chamados ensaios de interpretação do Brasil, obras que buscavam apontar a singularidade do Brasil enquanto nação ao mesmo tempo em que constatavam os obstáculos para a construção de uma identidade nacional em termos unitários.
Sejam estes obstáculos verdadeiros ou não, essas obras, altamente influentes, certamente auxiliaram a moldar seu próprio objeto de estudo, consolidando a ideia de uma nação em busca permanente de uma identidade.
Desta noção de uma modernidade marcada pela ausência nasce também o fenômeno do vira-latismo, ironicamente postulado por Nelson Rodrigues, que se resume em um complexo de inferioridade nacional (cultural, política e econômica), principalmente em relação à Europa e, posteriormente, aos Estados Unidos.
No contexto do pós-colonialismo, o vira-latismo pode ser compreendido como legado de um passado marcado pela relação do Brasil com os centros do poder colonial e/ou imperialista.
No contexto do pós-colonialismo, o vira-latismo pode ser compreendido como legado de um passado marcado pela relação do Brasil com os centros do poder colonial e/ou imperialista.
Adicionalmente, uma ideia central a essa modernidade particularmente brasileira proposta nos ensaios de interpretação do Brasil é a noção de “Dois Brasis”, tradicionalmente associada à obra de Jacques Lambert (1967), que mapeia uma divisão entre o moderno e o tradicional em descontinuidades espaciais (em um eixo urbano-rural e litorâneo-interior), em que as regiões subdesenvolvidas e os povos do interior são vistos como a versão passada de seus conterrâneos tidos como “modernos”.
Esse dualismo está historicamente ligado ao lento processo de ocupação do interior do país que, embora tenha se consolidado com o estabelecimento das fronteiras contemporâneas do Brasil, ainda resulta em grandes esforços políticos e culturais para solucionar o cenário díspar entre Sul e Norte e litoral/interior, fato diretamente ligado à formação de uma identidade brasileira. Assim, a própria composição geográfica e social do país está ligada ao passado de ocupação do território nacional.
Uma questão ainda sem resposta
Apesar de estudos como o de Letícia Cesarino, o status do Brasil enquanto nação pós-colonial ainda é debatido nos termos dos estudos pós-coloniais tradicionais, uma vez que as principais obras desse campo estão voltadas a nações com um histórico colonial bastante distinto do latino-americano e brasileiro.
Para a pesquisadora María Iñigo Clavo, certos usos da teoria pós-colonial no Brasil podem funcionar como falsas equivalências, particularmente no uso de noções complexas como a miscigenação na produção artística. Em seu artigo “Is Brazil a postcolonialist country?” (2016), a autora enfatiza que, apesar de o país atrair atenção internacional devido aos seus discursos de hibridez racial e antropofagia, que desafiam paradigmas eurocêntricos, os círculos acadêmicos brasileiros tendem a dedicar pouca atenção às abordagens propostas pelos estudos pós-coloniais.
Embora o ato de referir-se ao Brasil enquanto nação pós-colonial nos moldes tradicionalmente propostos pela teoria pós-colonial seja discutível na academia internacional, me parece claro que a literatura brasileira contém diversas manifestações de seu legado eurocêntrico e cristão, fenômenos específicos ligados ao seu passado colonial e à busca por uma identidade artística nacional no contexto de sua independência como nação.
Assim, apesar de ser esta uma questão ainda sem resposta, arrisco-me a afirmar que pode haver, sim, uma literatura brasileira pós-colonial.