Nunca, ao menos nesse século, a questão do armamento e dos conflitos armados esteve em pauta quanto a partir da eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos em 2016. Nem mesmo quando George W. Bush invadiu o Iraque, em 2003, a discussão atingiu – de forma tão intensa – a esfera popular em todo o globo. Somente a Guerra do Vietnã, nas décadas de 1950 a 1970, entrou tão profundamente no imaginário coletivo e foi o eixo de movimentos (contra-)culturais, se transformando em uma espécie de Santo Graal das produções para o cinema e para a literatura.
As lembranças e os traumas deixados pela guerra são a principal força-motriz de criações ímpares no cinema – como Taxi Driver, longa de Martin Scorsese, e A Outra Face da Violência, de John Flynn. Na literatura, Guerra sem fim, de Joe Haldeman, é o filho preferido deste conflito, e ajuda a exumar as relações dúbias entre o dever cívico e a realidade cruel nos campos de Hanói.
William Mandella, o protagonista de clássico da ficção científica, nasceu – não por coincidência – em 1975, ano em que os EUA deixaram o Vietnã após vinte anos de massacre. Patriota inveterado, Mandella é enviado com o exército para o espaço, onde precisa lutar contra criaturas que ninguém jamais viu, mas que o governo acredita que sejam o grande perigo para a raça humana. Nesse cenário apocalíptico e estranho do final dos anos 1900, os Estados Unidos já não existem mais, o mundo está reconfigurado, novos planetas foram descobertos e a dinâmica da sociedade foi completamente remodelada e desumanizada.
Metáfora
Expondo as contradições e as mentiras de guerra, Haldeman faz da sci-fi a grande metáfora para os absurdos do sacrifício humano. Mandella é um personagem ambíguo, representando o idealismo que percorre os recrutas, ao mesmo tempo em que se vê às voltas com uma sociedade aniquilada por um establishment manipulador e indecoroso.
Expondo as contradições e as mentiras de guerra, Haldeman faz da sci-fi a grande metáfora para os absurdos do sacrifício humano.
À medida em que os companheiros morrem – algo que é tratado com certa naturalidade –, Mandella é um dos poucos a dar-se conta da finitude da vida – ainda que tenha vivido centenas de anos –, colocando em xeque o ideal de distanciamento que as forças armadas pedem.
Guerra sem fim não se rende aos clichês de ficção científica militarista – como cenas de ação interplanetárias, decomposições com raio laser –, ao contrário, constrói um olhar psicológico sobre seus personagens, escrutinando de maneira intimista a realidade das tropas estelares. Como Philip K. Dick ou Kurt Vonnegut, Haldeman subverte o gênero e restabelece padrões, explorando novas temáticas e possibilidades.
Sexualidade
Quando foi publicado, em 1974, Guerra sem fim causou certo furor ao tratar de um tema que ainda parecia um tanto abstrato: a homossexualidade. Logo no início do livro, Haldeman cria uma espécie de orgia perpétua, na qual os soldados – homens e mulheres – eram convidados para que dormissem juntos, à guisa de se protegerem do frio e de estreitarem os laços de fraternidade e irmandade. Adiante – séculos adiantes, na verdade –, a heteronormatividade passa a ser desencorajada – como uma estratégia de controle populacional. Isso ajuda a explicar o porquê o livro foi rejeitado 18 vezes antes de ser publicado e levar os prêmios Hugo e Nebula, os dois mais importantes da literatura de ficção científica.
Para tentar explicar o contexto em que a sexualidade foi explorada no livro, Haldeman escreveu na introdução da edição brasileira:
“Eu tenho amigos gays e leitores gays e, claro, já os tinha na época em que Guerra sem fim foi publicado. Nunca foi minha intenção ser injusto ou desumanizá-lo – mas foi exatamente o que eu fiz, mesmo que tivesse que a melhor das intenções. Como todo o mundo hétero faz, e fazia cinquenta anos atrás.
O mundo em que eu vivia como soldado do Vietnã incluía homossexualidade. Mas em um cenário com tanta dor e tantas mortes, a sexualidade em geral estava presente, mas submersa.”
Em uma das partes mais divertidas do livro, Hadelman cria um estranhamento quando Mandella e sua esposa são identificados como heterossexuais e precisam se explicar diante de outros soldados. Com ironia, o autor trata da questão do preconceito por meio desse jogo de espelhos, colocando o status quo em situação de vulnerabilidade.
O ano da guerra
Ainda que Guerra sem fim esteja longe de ser um romance autobiográfico – anos antes havia publicado War year, este sim um livro de memórias –, o autor não foge às suas tintas. “Eu meio que passei pela guerra como se fosse um pesadelo bastante real”, disse. À parte de toda a carnificina que testemunhou, Haldeman foi ferido com um tiro de metralhadora .51, o que acabou – para a sua sorte – por abreviar sua passagem pelo solo vietnamita.
As descrições e as sensações que descreve fazem de Haldeman algo muito próximo a um irmão mais velho para centena de leitores que estão agora servindo o exército. Todas as semanas a sua caixa de correios é abarrotada de cartas de jovens em campos de batalha e de veteranos que relembram os horrores que viveram ou como se maravilharam com a experiência. “Algumas cartas me dizem que eu previ tudo isso, mas não é bem assim”, comenta em uma entrevista cinco anos atrás.
Escrito há quase cinco décadas, Guerra sem fim mais que uma metáfora sci-fi antibélica, mas um retrato realista e triste do caminho que parece estarmos tomando.
GUERRA SEM FIM | Joe Haldeman
Editora: Aleph;
Tradução: Luisa Geisler;
Tamanho: 354 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2019 (edição especial).
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