É raro um livro começar com uma frase tão impactante quanto a que Octavia Butler nos proporciona em Kindred: Laços de Sangue: “comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco”. Nascida na Califórnia em 1947, no auge da segregação racial nos Estados Unidos, Octavia é uma das mais importantes autoras de ficção científica e do afrofuturismo – já tendo sido contemplada com uma dezena de prêmios, entre eles dois Hugos, dois Nebulas e um Locus.
Ao longo de sua carreira, ela ganhou notoriedade em um nicho notoriamente dominado por homens brancos e esmiuçou em suas páginas diversas relações de poderes. Em Kindred, por exemplo, acompanhamos a história de Dana, uma escritora negra que vive na Califórnia nos anos 1970, se vê subitamente levada para a beirada de um rio em uma fazenda escravista em Maryland, alguns anos antes da Guerra de Secessão. Ela salva a vida de um pequeno garoto, Rufus, e descobre que ele é um de seus antepassados.
Ao longo do livro, descobrimos que Dana e Rufus estão conectados. A razão, ao que parece, consiste na preservação da própria linhagem: ela precisa evitar que ele morra nos diversos acidentes em que se envolve para que sua família possa nascer. Pensando que Dana está tentando escrever mais um de seus livros, empacada no processo criativo, podemos visualizar essas viagens também como uma viagem de estudo e aprofundamento da própria ancestralidade. De qualquer forma, pelo motivo de sua preservação, as viagens (tanto as de ida, como as de volta) só ocorrem quando a vida de alguém está em risco.
Em primeiro lugar, é interessante notar como a viagem no tempo se torna um recurso para acentuar como as relações racistas se mantiveram ao longo do tempo. Intercalando relatos pessoais, cenas do seu relacionamento amoroso e as situações vividas nos EUA escravista – tanto com a família branca quanto com os amigos escravos -, Dana nos apresenta diversas maneiras de exercício da opressão.
Mas, se por um lado ela apresenta as forças de ataque, também não deixa de lado as pequenas resistências do cotidiano. Octavia não escreveu um livro sobre a luta anti-escravista nos Estados Unidos, por isso que os relatos de resistência e luta dos escravos no sentido mais amplo são citados de maneira passageiras. O que ela nos deixa entrever são as relações cotidianas, as resistências subjetivas.
Octavia não escreveu um livro sobre a luta anti-escravista nos Estados Unidos. O que ela nos deixa entrever são as relações cotidianas, as resistências subjetivas.
Um autor que nos ajuda a visualizar essa situação é Michel de Certeau. Esse pesquisador francês voltou seus estudos da história aos sujeitos aparentemente passivos dentro das estruturas de dominação. Em um seus estudos, Certeau procurou mostrar como os sujeitos resistiam em seu cotidiano – discordando dos eruditos que só viam a resistência levando em consideração grandes movimentos sociais.
Ao analisar os operários que atuavam em uma fábrica, Certeau notou pequenas transgressões que ocorriam no nível pessoal, como o uso doméstico das ferramentas do patrão ou a apropriação de uma fração da produção. É essa resistência que podemos visualizar nos personagens – pequenas variantes de ações e ordens que são distorcidas para satisfazer desejos pessoais. Dana se oferece para ajudar a escrever passes de passeio, assim como recebe conselhos de obedecer ou desobedecer para cumprir seus desejos, ainda que isso lhe renda algumas chibatadas.
O que parece marcar a narrativa, já enunciada no título pelo uso da palavra kin, que significa não só parentes ou os relacionamentos sanguíneos, mas as pessoas que se conectam de alguma forma; laços criados pela identificação, empatia ou comunidade. Isso rende momentos conflituosos para a protagonista, como diz Helo D’Angelo em sua resenha para a revista Cult: “É marcante o conjunto de sentimentos conflituosos da própria narradora ao tentar unir seus antepassados (já que sabia que suas ações iriam gerar mais violência para sua tataravó). São sentimentos contraditórios que a escravidão também suscitou, já que todos os discursos da época – seja religioso, político, científico ou social – tinham como objetivo justificar o injustificável; normalizar o que, na prática, poderia ser chamado de tortura, assassinato e estupro”.
Butler não poupa para descrever a escravidão como ela era, mas não traz soluções fáceis. Hoje, a violência enquanto recurso catártico é bastante explorado pelas narrativas e, em Kindred, é difícil não sentir esse desejo explosivo. Mas Octavia mostra como a violência poucas vezes é a solução. Toma-se como exemplo as conjecturas sobre o assassinato de um senhor de escravos, que provavelmente desencadearia numa futura dor aos escravos que sobreviverem.
E essa não é a primeira vez em que a violência é alvo dessas reflexões de Octavia Butler, é possível visualizar uma reflexão parecida em “Sons da Fala”, conto publicado gratuitamente no Projeto Cápsulas da Editora Morro Branco (editora responsável pela tradução e edição das obras da autora no Brasil).
O conto apresenta um mundo pós-apocalíptico, onde uma doença atacou a população, deixando os poucos sobreviventes como pessoas irracionais, irascíveis e fora do alcance da linguagem: “A doença foi certeira no modo como derrubou as pessoas e como um derrame cerebral em alguns de seus sintomas. Mas era muito específica. A linguagem sempre era perdida ou severamente debilitada. Nunca era recuperada. Muitas vezes, também havia paralisia, debilidade intelectual e morte”.
A personagem principal, Rye, é uma das poucas pessoas que se mostrou resistente ao vírus e ainda era capaz de se comunicar. Nesse mundo, a violência é a maneira padrão de comunicação. A esperança e o renascimento surgem, ao longo da narrativa, a partir do diálogo – na fala e na escuta.
KINDRED – LAÇOS DE SANGUE | Octavia Butler
Editora: Morro Branco;
Tradução: Carolina Caires Coelho;
Tamanho: 432 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2019.